A antropofagia de Carmela Pereira pelo olhar de Cleber Zerbielli
A artista piracicabana, segundo Cleber, é um produto autêntico da antropofagia brasileira
O filme de Cleber Zerbielli, “A Negra Moderna”, sobre a artista caipiracicabana Carmela Pereira, parece ser o registro de um cotidiano. Começa com imagens da vida doméstica da personagem em seu ateliê/casa, ela falando sobre seu ofício e acontecimentos do mundo, no reino da maior simplicidade. Tudo caminha para um realismo plástico, intrigante pela peculiaridade temática. Até que é dado um salto no enredo e se percebe a verdadeira intenção do diretor. Vamos ao processo.
Logo no início da gravação, o próprio diretor pergunta a Carmela se ela conhece a obra “A Negra”, de Tarsila do Amaral. Em sua humildade, Carmela confunde o nome, mas não consegue alcançar o assunto. Com um pouco de dificuldade lembra-se do “Abapuru”, quadro da mesma artista. Parece uma pergunta deslocada, mas que vai fazer sentido em um segundo momento, em que Cleber Zerbielli aparece em cena de fato fazendo alguns paralelos entre a formação de Tarsila e de Carmela.
Apesar da distância temporal entre as duas artistas, Cleber observa que Tarsila viveu a infância em fazenda, assim como Carmela. Tarsila recebeu uma forte formação religiosa, assim como Carmela. A artista, nascida em Capivari no ano de 1886, fortemente influenciada pela Semana da Arte Moderna de 1922, iniciou o Movimento Antropofágico com Oswald de Andrade e Raul Bopp. E aqui aparece o fundamento do filme, pois Carmela Pereira, segundo Cleber, é um produto autêntico da antropofagia brasileira.
Ainda na sequência das analogias do autor do filme, mostra que Tarsila do Amaral nasceu em berço rico e se formou nas melhores escolas brasileiras e europeias. Enquanto Carmela, após sua infância sofrida em orfanato, onde aprendeu a ler e escrever, foi trabalhar em lares de famílias ricas paulistanas e, na capital, teve contato com uma cultura burguesa, onde assimilou à sua maneira um mundo de cultura e arte. Após a aposentadoria, seu talento artístico desabrochou e ela começou a produzir loucamente. Suas pinturas, classificadas como arte naïf, ganhou força e seu talento foi identificado pelo artista e intelectual José Maria Ferreira, que trabalhava no SESC-Piracicaba.
Cleber revela plenamente o propósito de seu registro, que é mostrar o olhar de uma modernista, que teve uma formação elitizada, para a realidade do país, sintetizada no quadro “A Negra”, de Tarsila do Amaral. Por outro lado, apresenta um quadro de uma artista que é resultado de um doloroso processo antropofágico e seu olhar para o mesmo tema: “A Negra”.
Enquanto Tarsila pinta a negra da fazenda, a ama de leite, com seus seios preparados para o ofício da amamentação dos filhos da casa grande, Carmela pintou uma negra burguesa, filha de um dos presidentes da República do Brasil, Rodrigues Alves: Maria Helena Rodrigues Alves, que foi sua patroa e amiga. Cleber não compara talentos, não compara estilos. Não coloca uma obra contra a outra para fazer analogias diretas. Simplesmente observa a relação entre ambas, sendo a primeira, fruto de um olhar burguês para a realidade nacional, em um país escravocrata, tendo como filtro o propósito modernista, fortemente influenciado pela cultura francesa. A segunda, como sendo o olhar de uma negra a partir de outro momento histórico, para o mesmo tema. Nasce então “A Negra Moderna”, que só pode vir à luz considerado o processo antropofágico proposto por Tarsila e Oswald de Andrade.
Vamos escrever mais sobre este filme, produzido com apoio do Ministério da Cultura, da Secretaria Municipal da Ação Cultural (Semac), com recursos da Lei Paulo Gustavo. Primeiramente, o filme está circulando as escolas públicas da cidade, como material de reflexão sobre a Semana da Consciência Negra.
Assista ao filme:
Ficha técnica: “A Negra Moderna”
Ano: 2024
Duração: 28’31’’
Direção e roteiro: Cleber Zerbielli | Fotografia: Rober Caprecci | Montagem: Maria Júlia Caprecci | Som Direto: Robson Khalil | Cenas aéreas: Daniel Kaschel | Trilha sonora: Saulo Luiz Vieira Ligo Júnior e Antoni Celso Sylvestre da Rocha | Produção: Rosângela Pereira | Assistente de Produção e Contábil: Tiara dos Santos da Silva | Audiodescrição: Mil Palavras Acessibilidade Cultural | Roteiro, narração e edição: Rodrigo Teixeira | Revisão: Alice Blau Schwartz | Consultoria: Rafael Braz | Libras: Sarah Lis | Artes: Bang Gráfica e Design e Rodolfo Cichito
Apoio: Secretaria Municipal de Ação Cultural de Piracicaba (Semac), com recursos da Lei Paulo Gustavo, do Ministério da Cultura e Governo Federal