Brilho fosco de uma cidade sem lembranças
Rodoviárias, praças públicas e estacionamentos sem sentido; lugares que se tornaram feios que podem ser belos novamente; o cancelamento da memória e o patrimônio histórico perdido
Antiga rodoviária “John F. Kennedy” de Piracicaba. Mal projetada, inundava quando chovia forte, as águas do ribeirão Itapeva enchiam a av. Armando de Salles de Oliveira. Imagem do acervo do blog “A Foto e a História”, do jornalista Edson Rontani Jr, disponível aqui.
Um amigo, já falecido, quando fazia o curso de Geografia, na graduação da Unesp, estudava certa vez o conceito de brown fields. Na mesa do happy hour, colocou para nós sua novidade. Sabe aqueles lugares na cidade que ninguém nota, porque são tão feios que as pessoas não querem se lembrar deles? Como as rodoviárias, e seus entornos.
Como uma partida de truco, cada um ali na mesa foi descartando o que dispunha, conceitos curiosos das ciências humanas, que pudessem ser relacionados. O primeiro, então, tinha sido o brown field.
Outro apresentado foi o de memória-prótese, que o terceiro amigo da mesa, cursando História, descreveu como a memória de eventos reais, mas tão idealizados, que se aproximavam de serem totalmente imaginários. Muitas vezes, os eventos seriam, de fato, inventados. Num e noutro caso, o objetivo é o mesmo: fornecer à comunidade memórias que se colocassem no lugar das reais, que são em sua maioria, banais, sem graça, nada diferentes de outras cidades ou países. Memórias que que lhe trouxessem razões para se orgulhar, para formar uma identidade coletiva a partir de eventos grandiosos ou dignos de serem lembrados.
Eu coloquei na mesa o conceito de damnatio memoriae, que é o equivalente do Império Romano do nosso atual “cancelamento”. Apagar as imagens de determinado personagem público que caiu em desgraça, uma punição por crimes contra o Estado romano. Retratos oficiais, menções em obras escritas e registros estatais, monumentos com o nome do danado, tudo era literalmente apagado, mesmo que se desfigurassem imagens: um apagamento silencioso e sem comentários, todos sabiam o que tinha acontecido. Uma mistura de cancelamento nas redes sociais, o apagamento dos registros nos arquivos do Ministério da Verdade de 1984, de George Orwell e a ordem para se apagar contas pessoais no X/twitter pelo STF.
Anos depois, lembrando desta conversa, não houve nenhuma conclusão quanto a alguma semelhança entre os três conceitos, um da Geografia, outro da História e outro tanto da História quanto da História da Arte. A partida terminou empatada, com três zaps descartados, já que os baralhos eram diferentes, mas jogando o mesmo jogo, todos ficaram satisfeitos.
Percebo hoje, escrevendo este texto, que foi Mnemosine, a Memória, mãe de todas as musas na mitologia grega, quem passou planando acima daquela conversa amigável. Era ela o elemento comum das três mãos de truco. Memória presente ou ausente, modelando cada uma das ideias.
Pois é o cancelamento da memória, a recusa em se lembrar, consciente ou não, que transforma ruas e edifícios em locis non gratae, “lugares indesejáveis” (brown fields); eventos históricos banais em mitos confortáveis e mais digeríveis (memória-prótese); e o apagamento consciente, recusa social de preservar a memória de pessoas físicas, tornado procedimento aceitável e, supostamente, instrumento de justiça social (damnatio memoriae, cancelamento nas redes, censura estatal).
Hoje vou falar dos lugares físicos em que não queremos ficar, os brown fields, locais cinzentos da não-memória. Não queremos criar nossas memórias neles, não há momentos para serem lembrados ali, a não ser os de fuga e distanciamento.
O “campo marrom” do nome em inglês, prefere culturalmente a cor marrom, associando-a com elementos negativos que nós, em cultura latina, associamos ao cinza. Seria o “lugar cinzento”, o cinza que é uma mistura de outras cores, que resulta na descrição visual de um desmaio, espalhado por todo o campo visual.
O “brown” anglo-saxão ou o cinza latino, onipresentes nesses “não-lugares” sufocam, entristecem, espantam. Cores compostas com sujeira, lixo, arquitetura funcionalista e desumana, pichações, e de forma infeliz, seres humanos fazendo parte desta paisagem, à beira da indignidade, ou além dela.
As rodoviárias, destinadas às viagens, mas planejadas para espantar as pessoas, ali não permanecem e ali não devem permanecer, e sim, embarcar e desembarcar, de maneira veloz e inconsciente. Rodoviárias não possuem o status de aeroportos nem o glamour residual das estações ferroviárias. Construídas com o material mais barato, pintado com a tinta mais chulé, e algumas nem pintadas são. A cantina ou lanchonete desses lugares serve tranqueiras embaladas com plástico, como torresmo artificial e sucos com corantes, com embalagem de plástico mole no formato de personagens infantis, bolovos, coxinhas e croquetes de carne que deviam vir acompanhados de uma bula com contraindicações, tudo para despachar os passageiros para as cidades desejadas ou para locais indesejados, como o pronto-socorro. Não há gari ou equipe de limpeza que consiga dar conta da sujeira do chão e dos célebres banheiros de rodoviária, item número 1 da lista dos “lugares onde você entra apenas em extrema necessídade”. No caso, a necessidade fisiológica.
Paira sobre estes brown fields a sombra da depressão, um clima pesado como se o ar fosse feito de um chumbo tóxico. Como se fossem poços onde toda memória, boa ou má, sumisse num redemoinho lento, devorador e silencioso.
Roger Scruton fala de lugares assim em “Por que a Beleza importa?” (Why beauty matters?). Um programa da BBC, ensaio do filósofo e esteta inglês ilustrado com imagens fortes e totalmente “fora da caixinha”, que discorda dos “inteligentinhos” da cultura globalizada, avalizadora incondicional de arquitetos como Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier e Oscar Niemeyer.
Em determinado ponto do programa, fala sobre as duas escolhas que a modernidade fez, em matéria de arte: o culto à feiúra e o culto à utilidade. Duas escolhas que passaram à arquitetura, e a transformaram em um monstro sem rosto, desumano.
Para Scruton, a famosa frase do arquiteto norte-americano Louis Sullivan, “A forma segue a função”, justifica o maior crime contra a beleza já cometido no mundo, a arquitetura moderna. A repulsa que as pessoas sentem por determinados lugares, segundo o filósofo inglês, deve-se principalmente à escolha de projetos arquitetônicos que deixam a beleza de lado e se concentram naquilo que o edifício “faz”, são úteis mas que são abandonados pelas pessoas porque são feios.
Em seu depoimento a respeito de sua cidade natal, Reading, ele lamenta a substituição de elegantes prédios vitorianos, ruas arborizadas e igrejas góticas por prédios de escritórios e um terminal de ônibus, na década de 1960. Ele caminha por estas edificações, e diz que foram literalmente abandonados, porque ninguém os quis, por serem feios. “Quando a beleza é abandonada, o que você projeta se torna inútil”, diz. Os locais foram vandalizados, cobertos por camadas e camadas de pichação, sobre paredes em ruínas e sujas por falta de manutenção. Ele diz: “não devemos culpar os vândalos, pois foram vândalos que projetaram este lugar. Os pichadores somente completaram o serviço”.
Em outro ponto, ele afirma: “A feiúra é um tipo de imoralidade”, ou seja, algo ruim, prejudicial, um verdadeiro pecado que se comete contra o próximo.
Edifícios da atualidade são mais e mais modernos conquanto sejam mais funcionais, úteis, e não bonitos. A racionalidade que originou essa arquitetura traduz-se em prédios inóspitos, a tradução em materiais pré-fabricados de desertos áridos em formas arquitetônicas. São projetos que já nascem destinados a se tornarem brown fields.
Como toda cidade que quer ser chamada de moderna, como é o nosso caso, copiamos as tendências que vão pelo mundo, sejam boas ou ruins. Não poderiam faltar prédios nem lugares feios, construidos a partir desta estética que só visa a utilidade, sem dar a mínima para qualquer beleza. Como deve ser horrível trabalhar nesses lugares, cumprir expediente em lugares onde as paredes gritam que a nossa necessidade de convivermos em um lugar minimamente agradável não vale de nada.
A descrição que fiz lá em cima de uma rodoviária, não pode mais ser aplicada à nossa, piracicabana. Embora já tenha sido. Ela, sozinha, deixou de ser um desses endereços de depressão urbana, embora colocando-se os pés imediatamente para fora dela estejamos em território perigosamente à beira de um brown field: barracões de armazéns da antiga ferrovia Sorocabana (onde funcionou, durante um tempo, o “Baile do Carlão”, e logo atravessando a rua da rodoviária, em direção ao Terminal de ônibus, o “Bar do Jegue”).
A rodoviária, embora funcionalista, absolutamente sem preocupações ornamentais, tem pelo menos sido pintada em cores vivas, o que ajuda a dar uma boa quebrada na aparência. Limpeza frequente nas redondezas e manutenção do asfalto das ruas próximas também ajudam. Há tentativas heroicas de que a área entre a rodoviária e a outra ponta do Terminal Central de Integração permaneçam agradáveis; ao contrário do que afirmam os detratores, pontos comerciais como McDonald's, o Oxxo e a Nutricesta, por ali, levantaram muito o visual e contribuíram para um ar mais civilizado.
Mas a nossa cota de brown fields existe, e infelizmente não há esforços em melhorá-los conscientemente. Prédios como o INSS de Piracicaba, na rua XV de Novembro, a sede do Departamento de Transportes Públicos (onde se fazem os cartões de ônibus, antiga Estação ferroviária da Sorocabana, ao lado do Terminal Central de ônibus), a Praça do Terminal Central, e tristemente, a própria Praça José Bonifácio são exemplos. Há outros, e não vou me estender, só acrescento à lista o próprio Centro Cívico / Prefeitura Municipal e o Teatro Municipal “Losso Netto” como locais detestáveis, como anotação para futuros textos.
Centro Cívico de Piracicaba, malemá “inspirado” no prédio do Banco Central do Brasil, que também é feio que doi. Foto do site da Alesp (https://www.al.sp.gov.br)
Antiga estação ferroviária da Cia. Sorocabana, prédio reformado em 1943, e que hoje é utilizado pelo Departamento de Transportes Públicos de Piracicaba, local onde é possível fazer o cartão de ônibus. Foto do acervo de Ralph M. Giesbrecht, publicada no blog “A foto e a história”, do jornalista Edson Rontani Jr., disponível aqui.
Na nossa sanha de modernização, que, dizem, foi retardada pela queda do Edifício Comurba em 1964 (um monstro arquitetônico, diga-se de passagem), crescemos sem refletir sobre as consequências não só de copiar projetos sem nenhuma reflexão, utilizando o “moderno” como mero argumento de venda, mas também destruindo prédios antigos belos, como o Solar do Barão de Rezende no centro da cidade, peças raras e bonitas como o antigo chafariz da praça da Catedral, substituída por uma fonte luminosa medonha, removida recentemente e que não deixou nenhuma saudade.
Poderíamos ter sido uma Itu, que preservou grande parte de seus edifícios históricos, vários da época das bandeiras, mas também solares dos barões do café belíssimos, igrejas com pinturas barrocas, prédios de uso civil como o Senado da Câmara de Vereadores, e fábricas como o Espaço Fábrica São Luiz.
Quantas praças, bosques e passeios foram destruídos em Piracicaba, quantos belos casarões foram derrubados! Quanto da nossa paisagem urbana foi completamente deformada, para atingirmos o sonho sem esperança do progresso!
Parece que seguimos a mentalidade expresssa na piada, não sabemos se verdadeira ou não, que conta a história de um prefeito de Piracicaba na década de 1960, que ao voltar de uma viagem à Europa, foi questionado se havia gostado do que viu por lá. Ele teria respondido: “Gostei muito, só acho que tem muita coisa velha, podiam derrubar e fazer tudo novo, afinal, eles têm dinheiro!”
Agora, a praça Antonio de Pádua Dutra, próxima do TCI e provável local do antigo Largo da Forca, somou-se a estes lugares medonhos. Já não era lugar bonito; dali para frente, no entanto, seria possível dar-lhe vida, justificar a homenagem a um criador de beleza, que foi o pintor Dutra. Mas preferiu-se o de sempre, derrubar o (já pouco) belo para dar lugar à funcionalidade, à utilidade. Que se questione, será que resultou alguma coisa, a ponto de piorar o visual?
Vista aérea da praça Antonio de Pádua Dutra, em Piracicaba, “revitalizada”, segundo a prefeitura. Passando pelo detector de bulshitagem, “revitalizar” significando tirar a vida, e não “dar vida nova”. Um monstrengo urbanístico. Foto e press-release da prefeitura clicando aqui.
Esta obra de horror urbano, que nada acrescentou à vida piracicabana, a não ser uns trocados a mais para a prefeitura na Zona Azul, pode ser revertida, como foi feito no Largo São Benedito, em frente à igreja do mesmo nome. Antes um estacionamento, agora revertida numa pequena praça, com um bonito piso com uma Rosa dos Ventos, revestimento da tradicional técnica da pedra portuguesa. Um caso raro em que as autoridades públicas valorizaram o sítio histórico e a convivência das pessoas, favorecendo a reconstrução de um lugar agradável. Por que não fazer o mesmo na praça próxima ao Terminal?
Por enquanto, o busto do pintor Antonio de Pádua Dutra mira, deslocado entre carros, placas de sinalização e pessoas apressadas com seus celulares, a modernidade, desfocada entre a busca frenética da satisfação imediatista e o tombamento dos ícones do passado, erguendo novos ídolos em altares descartáveis.
Adorei!! Parabéns pelo conteúdo tão importante!