Carmela Pereira e “A Negra Moderna”
A artista se confunde com a própria vida e obra, no documentário de Cleber Zerbielli
“A Negra Moderna” é uma obra de arte, pintada em 1993 por Carmela Pereira, artista piracicabana de 88 anos. A pintura é tema do documentário de mesmo nome, com direção e roteiro de Cleber Zerbielli, lançado em 2024.
Para quem não conhece Carmela Pereira e sua obra artística, penso ser necessário que se conheçam alguns fatos, que não estão no filme. Para não deixar perguntas no ar, nem dúvidas de como a obra de Carmela e especificamente a pintura “A Negra Moderna” dialoga com toda uma tradição artística, como Zerbielli faz bem questão de mostrar. Mas o diretor fala principalmente para quem conhece Carmela, o que não é o caso de muitas pessoas que poderão assistir ao filme.
Arte Naïf e sua origem, necessária para explicar a arte de Carmela. “Naïf” quer dizer “ingênuo” em francês, e é usado para abranger a produção de artistas vistos como “primitivos”, “inocentes”, “populares” e até “espontâneos”. Descreve a arte de pessoas geralmente das camadas sociais mais pobres (mas não só), de artistas autodidatas, que não tiveram oportunidade de frequentarem uma escola ou ateliê de arte acadêmica, ou de receberem qualquer tipo de treinamento artístico formal.
Artistas naïfs não seguem as convenções da arte acadêmica, como dimensões, proporções, anatomia ou perspectiva, utiliza cores vivas e às vezes brilhantes. Isso pode ser consciente ou não, sendo mais valorizadas pelo meio cultural e pelo mercado aqueles artistas não conscientes, mantendo sua inocência, sua espontaneidade, autenticidade. Tudo isso levaria a uma expressão “não contaminada” pela malícia da arte erudita. Por conta disto, a arte naïf lembra tanto os desenhos e pinturas das crianças quanto a arte de povos primitivos.
Foi Henri Rousseau (1844-1910), funcionário da alfândega francesa (“douanier”, em francês: um dos seus apelidos é “Douanier Rousseau”), o primeiro artista da história da arte a ser chamado de “naïf”.
“Eu mesmo”, autorretrato de Henri Rousseau, de 1890, acervo da Galeria Nacional de Praga, República Tcheca.
“O sonho”, obra de Henri Rousseau, de 1910, acervo do MoMa de Nova Iorque, EUA.
A reação inicial às suas obras foi negativa, mas graças aos pintores Camille Pissarro e Paul Gauguin, além dos escritores Alfred Jarry e Guillaume Apollinaire, foi notada a originalidade e expressividade de Rousseau. Ainda que Rousseau tenha tomado para si os elogios como exaltando sua técnica que, na sua cabeça, seguia a mesma linha dos artistas acadêmicos consagrados. Por isso, foi chamado de naïf - “ingênuo” - , de forma pejorativa, como zombaria.
As reações a seus quadros, normalmente, eram de riso e zombaria. Foram os artistas de vanguarda, modernos – neoimpressionistas, cubistas, futuristas, fauvistas - que o valorizaram. Pablo Picasso, em 1910, ofereceu um grande banquete em homenagem ao pintor. Nesta ocasião, Rousseau sussurra ao ouvido do artista espanhol: “Você e eu somos os maiores pintores; eu no gênero moderno, você no gênero egípcio”.
É bom saber que Henri Rousseau, além de pintor e professor de desenho e pintura, também foi violinista, compositor e professor de música, além de autor de peças de teatro. Um artista que usou várias artes para se expressar, além da pintura, como Carmela Pereira.
Artistas que possuem similaridades com o “Douanier”, populares ou não, passaram a ser também chamados de “artistas naïfs”. Artistas brasileiros que se tornaram conhecidos nesta tendência artística são Heitor dos Prazeres, José Antonio da Silva, Antonio Poteiro, Djanira da Motta e Silva.
Em Piracicaba, Joaquim Dutra já foi chamado de naïf, mas totalmente dentro do estilo naïf estão Ciro de Oliveira, Paulo Bhai, Mônica Santana, e é claro, Carmela Pereira.
A vida e a carreira da artista. É bom pontuar alguns fatos da vida de Carmela Pereira, que influenciam sua arte, e que não são abrangidos pelo filme, por não ser a proposta do diretor.
Carmela Pereira nasceu em 1936, em Piracicaba, e foi criada no Sítio Rio Acima, próximo do bairro Monte Alegre. Fez parte de uma família com doze irmãos. Ficou órfã de pai e mãe com sete anos de idade, foi levada para o Lar Escola Coração de Maria Nossa Mãe, no centro da cidade, e lá ficou até os dezessete anos. É ali que recebe a base de sua formação, incluindo a profissional. Lá, teve contato com Madre Cecília - Carmela prestou depoimento para a sua Causa de Canonização, que foi encaminhado para o Vaticano.
Quando chegou à maioridade, vai a São Paulo para trabalhar em uma fábrica. Trabalhou também na cidade de Santos, durante quatro anos, no Hotel Amapá, como ajudante de cozinha. Totalizando todo o tempo de trabalho fora de Piracicaba, foram 36 anos até a aposentadoria, incluindo um período no Hospital Santa Cruz da capital. Na maior parte desse tempo, trabalhou como empregada doméstica, em casas de famílias ricas, onde teve contato com arte erudita, incluindo a casa de Maria Helena Rodrigues Alves, a pessoa retratada em “A Negra Moderna”.
Conheceu o marido, José Rodrigues em São Paulo, e com ele teve a filha Ana Cíntia. O marido morreu muito jovem, aos 31 anos. Quando se aposenta, e volta a morar em Piracicaba, é que explode sua criatividade, pôde enfim se dedicar à pintura, à música e à literatura, tendo publicado já mais de 20 livros, entre eles o “Manual da Empregada Doméstica”.
Carmela foi descoberta, como artista plástica, por José Maria Ferreira, piracicabano, crítico de arte e jornalista, na década de 1980. Trabalhando no Sesc Piracicaba, foi ele quem identificou o trabalho de Carmela como naïf.
A Mostra Nacional de Arte Ingênua e Primitiva, realizada no Sesc Piracicaba em quatro edições, em 1986, 1987, 1988 e 1991, foi criada por Antonio Nascimento, com Ferreira na equipe de curadores. Carmela ganhou seu primeiro prêmio como artista, uma menção honrosa, na edição dessa mostra em 1991. Ferreira faleceu neste mesmo ano.
Em 1992, foi criada a Bienal de Arte Naïf de Piracicaba, que depois mudou seu nome para Bienal Naïfs dos Brasil. Nesta bienal, Carmela ganhou o Prêmio Aquisitivo, em 1994, além de ter sido selecionada em quase todas as edições. Em 2020, na 15.a edição do evento, foi convidada pelo evento para que suas obras dialogassem com as obras selecionadas pela comissão julgadora.
Carmela Pereira, “Folclore, Tradição e Lendas”, 2010. Exposto na Bienal Naïfs do Brasil.
Desde então, Carmela tem sido reconhecida localmente em sua produção, vendendo seus quadros e livros, ministrando cursos de pintura, costura e bordado, muitos deles realizados no Sesc, participa da Feira de Artesanato da Rua do Porto, tendo suas imagens utilizadas em eventos, um exemplo bem conhecido é o cartaz da peça teatral “Lugar Onde o Peixe Para”, do Grupo Andaime. Em 2024, a Pinacoteca Municipal “Miguel Dutra” foi reinaugurada com exposição individual com retrospectiva de sua obra, com curadoria de Margarete Regina Chiarella.
A Negra Moderna. O filme é dividido em duas partes. Na primeira, Carmela é filmada em uma longa fala, um dos intervalos na repintura da tela “A Negra Moderna”. No qual ela faz café e conversa com o diretor.
A segunda parte é composta de recortes onde sua sobrinha, Rosângela Pereira, o próprio diretor Zerbielli e o irmão de José Maria Ferreira, Francisco Ferreira, falam sobre Carmela e fazem algumas interpretações sobre sua vida e obra.
A tese de Zerbielli é que Tarsila do Amaral e Carmela Pereira possuem pontos de contato suficientes para que, no seu entender, Carmela seja considerada “antropofágica”. No mesmo sentido que dá à palavra o Movimento Antropofágico de Tarsila e Oswald de Andrade, de 1928, o ano em que a tela “Abaporu” foi pintada.
Segundo a própria artista, a tela retrata sua ex-patroa Maria Helena Rodrigues Alves, neta do Presidente da República Rodrigues Alves (que faleceu no meio de seu segundo mandato, em 1919). Em nenhum momento no filme, Carmela explica porque Maria Helena seria a “negra moderna”. Não está preocupada em interpretar a imagem de sua criação, ou fazer qualquer relação com outras que poderiam a ter inspirado. Absoluta tranquilidade quanto a leituras, a impactos que possa causar.
Uma informação que ajuda explicar a existência de “A Negra Moderna” é a gratidão de Carmela à sua ex-patroa, que doou material de construção para que ela erguesse sua casa em Piracicaba, depois de aposentada.
Zerbielli a filma fazendo algum trabalho na pintura. Na verdade, filma a repintura. A tela foi pintada originalmente em 1993, e estava em grau de decomposição avançada em 2019, a ponto de estar separada para o lixo, quando Zerbielli a abordou e pediu para ver a obra presencialmente.
Ele está muito mais interessado em mostrar Carmela como pessoa autêntica, uma representante legítima da “arte naïf”, uma pessoa “raiz” e que espelharia visualmente, em suas pinturas, somente uma pequena parte de sua espontaneidade e visão de mundo simples. Por isso capta mais sua fala e inclui na edição mais sobre sua história de vida do que suas opiniões sobre sua própria produção artística. A interpretação fica a seu cargo, e é feita a partir de alguns pontos de contato que enxerga entre Carmela Pereira e Tarsila do Amaral.
“A Negra” (1923), de Tarsila do Amaral, e “A Negra Moderna” (1993-2019), de Carmela Pereira.
A tese do diretor é que Carmela tenha visto “A Negra” de Tarsila do Amaral em algum momento de sua vida, e mesmo sem saber o que a obra modernista significa, nem quem a fez, tenha lhe servido de inspiração para o quadro de 1993. Representa, segundo ele, a antropofagia da maneira mais pura e legítima, pelo fato de ser uma artista popular, sem formação erudita nem muitas referências culturais. Mesmo que as duas telas, “A Negra” original e “A Negra Moderna” não tenham muitos pontos de contato, a Zerbielli é suficiente o fato de ambas as artistas terem nascido e crescido em meio rural, além de elegerem temas da tradição popular em suas obras e assim, alcançarem em suas obras a identidade brasileira de maneira muito forte, “devorando” a cultura popular brasileira e “regurgitando” arte antropofágica (como descreve Oswald de Andrade no “Manifesto Antropofágico” de 1928).
Focando o quadro que dá nome ao filme, permitam-me fazer um desenvolvimento, que o documentário não deixa explícito, mas que é permitido pelo desenrolar da argumentação do filme.
Além da tese do diretor, a sobrinha Rosângela Pereira também interpreta a obra literária “Manual da Empregada Doméstica” de forma muito diferente que a leitura do texto permite. O “Manual”, que mostra a habilidade poética de Carmela, é um texto que orienta as empregadas em suas funções, segundo a mentalidade de uma pessoa que foi discriminada, mal remunerada e explorada nos empregos, por ser preta e pobre. Por isso mesmo, ela aconselha às colegas o que devem fazer para se ajustar da melhor maneira possível em seus empregos, assim como na vida pessoal, com seus maridos. Visto do ponto de vista estrito da atuação política, hoje o texto seria condenado por ser conivente com o “discurso dos opressores”. Eu o vejo como um formidável exercício de reflexão do mundo em que Carmela viveu, em que existiam muitas dificuldades que precisavam ser superadas para a sobrevivência profissional. Carmela dá conselhos para que suas colegas superem estas dificuldades, com muita poesia e pontos de vista que mostram sua maturidade, sua sabedoria, de uma vida inteira, que não foi fácil.
Rosângela, no entanto, lê o texto da tia como um conteúdo que é o contrário do que aparece impresso, ou seja, como feminista, contestador, à frente do seu tempo e da função social da profissão que a tia exerceu durante tanto tempo.
Sendo Carmela, na imagem que Cleber Zerbielli e Rosângela Pereira traçam, uma artista autêntica, a ponto de ser mais antropofágica que Tarsila, por estar mais próxima da matéria-prima da Antropofagia, e à frente de seu tempo, enfrentando discriminações, trabalho em condições aviltantes e mal-remunerada, sendo por isso mesmo feminista, é possível inferir que na visão dos dois, o quadro “A Negra Moderna” seja o retrato da própria Carmela, uma “negra moderna”.
Tese similar que é sustentada por alguns teóricos de que a “Mona Lisa” seja o retrato do próprio Leonardo da Vinci, ou na tese de Tarsilinha, a sobrinha-neta de Tarsila, que a tia-avó estaria retratando a si mesma no “Abaporu”.
Se este tese fizer sentido, então a referência de Carmela à sua ex-patroa - a explicação da própria artista sobre o assunto da pintura - ser ou não uma idealização, como uma mulher que ela admira e na qual se espelha – é uma questão que fica em aberto.
Ficha técnica: “A Negra Moderna”
Ano: 2024
Duração: 28’31’’
Direção e roteiro: Cleber Zerbielli | Fotografia: Rober Caprecci | Montagem: Maria Júlia Caprecci | Som Direto: Robson Khalil | Cenas aéreas: Daniel Kaschel | Trilha sonora: Saulo Luiz Vieira Ligo Júnior e Antoni Celso Sylvestre da Rocha | Produção: Rosângela Pereira | Assistente de Produção e Contábil: Tiara dos Santos da Silva | Audiodescrição: Mil Palavras Acessibilidade Cultural | Roteiro, narração e edição: Rodrigo Teixeira | Revisão: Alice Blau Schwartz | Consultoria: Rafael Braz | Libras: Sarah Lis | Artes: Bang Gráfica e Design e Rodolfo Cichito
Apoio: Secretaria Municipal de Ação Cultural de Piracicaba (Semac), com recursos da Lei Paulo Gustavo, do Ministério da Cultura e Governo Federal