Modernidade Caipira e o Modernismo de 22 em Piracicaba (06)
A Universidade Popular de Piracicaba (UPP)
Prossegue a publicação do livro editado pelo IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba) em 2023, de autoria de Fábio San Juan e Romualdo da Cruz Filho, em partes. Leia as postagens já publicadas, clicando nos links a seguir:
Parte 01; Parte 02; Parte 03; Parte 04; Parte 05.
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A Universidade Popular de Piracicaba (UPP)
A Universidade Popular de Piracicaba, iniciativa pioneira no interior do país, foi divulgada na imprensa dos grandes centros brasileiros, suas atividades eram divulgadas com frequência nos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro. Aqui, vemos o "press release" da fundação, em 1910, publicado na revista "A Escola", do Grêmio dos Professores Públicos do Estado do Paraná. Acervo da Biblioteca Nacional, disponível para consulta em https://memoria.bn.br
No rol de iniciativas ousadas nas primeiras três décadas do século XX, que colocaram Piracicaba em destaque, esteve a constituição de uma “universidade popular”.
Cecílio Elias Netto (2000) conta que no início daquele século, mais precisamente no dia 25 de agosto de 1910 (ALMANAK LAEMMERT, 1913, informa que a instituição foi fundada em 29/08/1910 e iniciou as atividades em 03/09/1910), foi fundada a Universidade Popular de Piracicaba, destinada a levar ao povo aquilo que se ensinava nos colégios e nas faculdades. Seria, hoje, o correspondente às “universidades abertas” ou de “terceira idade”, por não ser possível, aos alunos, angariar o diploma de curso superior ao final do curso. Mas o seu programa não ficava nada a dever a cursos universitários “de verdade”, respaldados pelas autoridades educacionais.
Instalada no local onde depois foi construída a sede do Clube Cristóvão Colombo, na esquina da rua Governador Pedro de Toledo com a rua Prudente de Moraes, em imóvel doado pela família Moraes Barros (do ex-presidente Prudente de Moraes). A Universidade começou a funcionar no imóvel em dezembro de 1912, “depois uma ampla reforma” (CORREIO PAULISTANO, 06/12/1912). De 03 de setembro de 1910 a 1912 funcionou no Teatro Santo Estevão, “gentilmente oferecido para esse fim” (A ESCOLA, PR, 1910, p. 337).
É muito provável que a Universidade Popular de Piracicaba tenha se inspirado na Universidade Popular de Ensino Livre - UPEL, uma “universidade livre” (sem respaldo governamental) que começou em 1904 (Aquino, 2011) na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época ainda não existiam universidades no Brasil, embora existissem algumas faculdades no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife. Seus fundadores foram os médicos Fábio Luiz, Martins Fontes e o historiador Rocha Pombo. Contou com nomes de peso, como Sílvio Romero, José Veríssimo, Tácito Cardoso, Eliseu Visconti e muitos outros intelectuais, que se dispuseram a ministrar disciplinas para um público popular, ou seja, de operários e pessoas sem instrução. Iniciou-se na então capital federal e tinha a proposta de transitar por outras cidades brasileiras, ou seja, tinha pretensão de ser itinerante. Propunha-se também a ser um centro de lazer e cultura, além de local para se ministrar cursos superiores. Como era uma iniciativa do movimento anarquista, foi fechada no mesmo ano da fundação, mas a ideia repercutiu, gerando iniciativas semelhantes em outras cidades, como a Universidade Livre de São Paulo. A versão paulistana seguiu o modelo da UPEL mas foi mais duradoura, tendo sido fundada em 1912 e atuado até 1917 (SOUZA, 2005).
Provavelmente, a Universidade Popular de Piracicaba teve inspiração direta da sua epônima fluminense, já que iniciou suas atividades em 1910, antes, portanto, da versão paulistana. É necessário dizer: embora a “ideia-mãe” não seja piracicabana é, no entanto, um fato muito singular uma cidade do interior ter um ambiente tão favorável à educação e cultura a ponto dos seus intelectuais enxergarem a necessidade de se instruir também, em nível superior, as pessoas de camadas populares, e não só as pessoas que na época recebiam tal instrução, vindas de estratos socioeconômicos superiores. Já era bem incomum cidades do interior terem intelectuais, como Piracicaba teve, quanto mais possuir uma universidade livre e popular. E some-se a isto o fato da instituição piracicabana ter durado mais do que ambas: de 1910 a 1927, como veremos abaixo.
A finalidade da instituição era “a vulgarisação das materias que são objecto do ensino secundario e superior, no que diz respeito às sciencias, á literatura, ás artes em geral, a todos os ramos da actividade humana (sociologia, religião, philosophia, comércio, indústria agrícola, etc.” (A ESCOLA, PR, 1910, p. 336). Tinha ainda como objetivos o ensino e o incentivo à prática de esportes, “principios essenciais da hygiene”, ações de “beneficência, mutualidade e de qualquer utilidade geral”, além de estabelecer “pequenas industrias manuaes para sustentar os enfermos incapazes de grandes esforços”, “cozinhas economicas onde, mediante um preço modico, os trabalhadores poderão achar uma alimentação san e substancial”, “ensinar á mocidade de todas as classes as linguas modernas, a dactylographia e a stenographia, a contabilidade e correspondencia commercial, e facilitando-lhe a collocação”, “uma escola pratica domestica para moças de todas as classes, onde poderão aprender tudo o que faz uma boa dona de casa” (A ESCOLA, PR, 1910, p. 336).
Para realizar este ambicioso e amplo programa não só de educação, mas de formação profissional e assistência social, a Universidade pretendia organizar “conferencias de vulgarisação e aulas; concertos pagos e gratuitos, uma bibliotheca, uma sala de gymnastica, comportando uma installação de banhos economicos, um theatro ao ar livre num logar espacial reservado tambem para festas e jogos populares”. E ainda mais benéfico, pretendia ainda financiar bolsas de estudo para alunos da cidade em outros locais: “constituirá uma caixa de auxilio para permitir a alumnos das escolas de Piracicaba irem completar seus estudos nas escolas superiores do paiz e do estrangeiro” (A ESCOLA, PR, 1910, p. 337)
Em notícia do jornal “Correio Paulistano”, de 1912, informa-se que as aulas teriam início naquele ano, no dia 04 de março, segunda-feira, que o “ensino de línguas e sciencias está confiado a professores competentes e as aulas terão inicio ás 7 e meia da noite, terminando ás 9 e meia” (CORREIO PAULISTANO, coluna “Piracicaba”, rubrica “Universidade Popular”, 02/03/1912).
Seu modelo de financiamento, como de outras instituições similares à época, era o de ser sustentada por membros que contribuíam com uma joia, uma taxa de inscrição, e uma mensalidade. A notícia publicada pela revista “A Escola”, do Grêmio de Professores Públicos do Paraná, em 1910, na qual é apresentado o projeto que, segundo o texto, “iniciará amanhan as suas aulas”, informa que havia as seguintes modalidades de membros: fundadores, contribuintes, remidos, beneméritos e honorários, todos contribuindo mensalmente com 2 mil réis, diferenciando-se uma modalidade da outra apenas pelo valor da joia, que variava de 20 mil réis (membro fundador) até o contribuinte, cuja joia era de 5 mil réis. Os sócios remidos pagavam 200 mil réis de uma só vez. Aos alunos não era cobrada nenhum tipo de mensalidade (A ESCOLA, PR, 1910, p. 337). É provável, embora não comprovado, que a instituição cobrasse pelo uso de sua sede para formaturas de turmas de alunos de cursos universitários, já que a imprensa paulistana noticiava que formaturas eram realizadas em sua sede, como de turmas da Faculdade de Odontologia, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - Esalq, assim como colação de grau de ensino secundário da Escola de Contabilidade Moraes Barros ( como por exemplo, em CORREIO PAULISTANO, 17/12/1921 e 15/01/1923)
A Universidade não aceitava membros de menos de 16 anos de idade para o sexo feminino e de 18 anos para o sexo masculino, “com o fim de evitar qualquer prejuizo ás escolas e aos professores estabelecidos” (A ESCOLA, PR, 1910, p. 337). Em fevereiro de 1914, resolveu-se criar um curso secundário (equivalente ao atual Ensino Médio) na instituição (CORREIO PAULISTANO, 03/02/1914).
Cumprindo seu programa inicial, a Universidade Popular de Piracicaba inaugurou sua biblioteca, aberta ao público em 25 de fevereiro de 1913 (a primeira biblioteca pública da cidade) (CORREIO PAULISTANO, 26/02/1913), que recebia gratuitamente periódicos de várias instituições, dado o caráter beneficente da iniciativa (A IMPRENSA, RJ, 20/12/1912); o mesmo jornal noticiava que o movimento da biblioteca tinha sido, no mês de setembro daquele ano de 662 consultas, uma média de 25 consultas por dia (CORREIO PAULISTANO, 06/10/1913). Também apresentou concertos e saraus, destacando-se o orfeão do Maestro Fabiano Lozano e os grandes músicos da época: Benedito Dutra Teixeira e Erotides de Campos.
Personalidades que se tornariam respeitadas nacionalmente por sua cultura e conhecimento participavam da diretoria da Universidade Popular, incluindo o que se tornaria consagrado escritor, o intelectual Brenno Ferraz do Amaral, Thales de Andrade, Antoninho Pinto, Osório de Souza, professores da então Escola Agrícola de Piracicaba e da Escola Normal, hoje Sud Mennucci, transmitiam, graciosamente, às classes populares os conhecimentos que abriram horizontes novos a operários, trabalhadores na indústria têxtil, comerciários, etc. (ELIAS Netto, 2000, p. 129).
Ida Schalch, Octavio Prates e o mestre de ambos, Joaquim Bueno de Mattos, realizaram a que tenha sido, talvez, a primeira exposição pública de pinturas na cidade, na sede da Universidade Popular, em julho de 1920 (MELLO, 1999). Tales Castanho de Andrade publica em 1917, na revista “A Vida Moderna”, de São Paulo, o texto de uma conferência proferida na Universidade: “Contradições moralistas”, no qual discorre sobre pontos de vista opostos a respeito da curiosidade e da preguiça.
“Contradições moralistas”, texto da conferência que Tales Castanho de Andrade proferiu na Universidade Popular de Piracicaba e publicado na revista "Vida Moderna", em 1917. Acervo da Biblioteca Nacional, disponível para consulta em https://memoria.bn.br
Outras notícias, de jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, dão conta das atividades da UPP ao longo da década de 1910 até 1920. O “Jornal do Commercio”, “O Paiz”, “A Fazenda”, “A Imprensa” e o “Almanak Laemmert”, todos do Rio de Janeiro, e de São Paulo os veículos “Correio Paulistano”, “A Vida Moderna”, além de “a República”, órgão do PRP, divulgam as atividades desta iniciativa.
O “Almanak Laemmert” para o estado de São Paulo, publicado no Rio de Janeiro, lista a Universidade Popular de Piracicaba em funcionamento na rubrica “Associações” de 1910 até o ano de 1927. A última notícia na imprensa paulistana que localizamos, a respeito de atividade na UPP, é de 1925, sobre o concerto do violinista Clovis Queiroz (CORREIO PAULISTANO, 21/12/1925).
Tendo durado de 1910 a 1927, portanto, mais longeva que suas símiles no Rio de Janeiro e São Paulo, foi uma referência brasileira, surpreendendo ainda mais por se situar no interior, distante dos grandes centros urbanos. No entender de um leitor na “seção de cartas” no jornal “O Paiz”, do Rio de Janeiro, em 1913, a Universidade Popular de Piracicaba “já póde servir de modelo ás que porventura venham a se crear neste paiz, onde tanto se fala e pouco se faz”. (O PAIZ, 25/01/1913, p. 2).
O “Ateneu Paulista”, terra das escolas, se consolida então com a Universidade Popular, ao lado da Escola Agrícola, Escola Normal, Colégio Piracicabano, Grupo Escolar Barão do Rio Branco, Grupo Escolar Moraes Barros, Colégio Seráfico, Instituto Baroneza de Rezende, Escola de Comércio Moraes Barros, entre outras.
Continua no próximo domingo, dia 29/12/24.
O livro “Modernidade Caipira e o Modernismo de 22 em Piracicaba” é resultado da pesquisa apresentada pelos autores ao Sesc Piracicaba em 2022, que resultou em uma atividade de turismo cultural, “Por Onde Andaram os Modernistas em Piracicaba”, realizado no período de setembro a outubro de 2022.