Modernidade Caipira e o Modernismo de 22 em Piracicaba (08)
O “Grupo de Piracicaba”, influente na cultura e política paulistas
Prossegue a publicação do livro editado pelo IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba) em 2023, de autoria de Fábio San Juan e Romualdo da Cruz Filho, em partes. Leia as postagens já publicadas, clicando nos links a seguir:
Parte 01; Parte 02; Parte 03; Parte 04; Parte 05; Parte 06; Parte 07.
As postagens são feitas aos domingos e quarta-feiras, e são abertas a todos, gratuitamente.
Assine o Viletim por apenas R$10,00 / mês, e receba textos como este. Jornalismo independente, análises, opinião, cultura e bom-humor. Do interior paulista para o mundo.
O “Grupo de Piracicaba”, influente na cultura e política paulistas
Monteiro Lobato (ao centro, de chapéu, segurando o pilar) e funcionários da companhia Petróleo do Brasil, década de 1930. O autor de “Urupês” e da saga do Sítio do Picapau Amarelo foi pioneiro empresário nas áreas de ferrovias, exploração petrolífera e indústria editorial. Nos veículos de imprensa e editoras de Lobato, os jornalistas e escritores piracicabanos ocuparam cargos importantes e também tiveram livros publicados que atingiram recordes de vendagem. Autoria da foto: desconhecida. Reproduzida em https://commons.wikimedia.org
Tanto José Maria Ferreira como Cecílio Elias Netto tratam o período entre 1920 e 1930 (com extensões até 1940) como sendo a “Era de Ouro” da cultura local, porque é quando os intelectuais da cidade se destacam de tal maneira a ponto de ocupar espaço na redação do jornal “O Estado de São Paulo”, considerado uma referência e local de debates de ideias no país. Hélio Damante, um dos integrantes deste grupo (chamado de “Os piracicabanos de O Estado”, “a geração piracicabana no Estadão”, “Turma de Piracicaba” ou “Grupo de Piracicaba”, pelos próprios participantes), afirma que o próprio Monteiro Lobato havia despertado para a movimentação dos piracicabanos a ponto de escrever que o perigo não era “amarelo”, ou seja, uma invasão vinda da China ou Japão, como se temia na época: “o perigo é piracicabano” (Hélio Damante, “Piracicabanos em ‘O Estado’”, “O Estado de São Paulo”, 01/08/1967).
Citando Patrícia Polacow, em artigo na revista do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (POLACOW, 2013), “para Hélio Damante, o ‘grupo piracicabano’ compunha-se majoritariamente de professores normalistas, mas também por autodidatas, paulistas ou filhos de imigrantes, que chegavam ao jornal ‘seguramente influenciados pelo ambiente em que se formaram. Não só redatores e colaboradores, mas correspondentes, recrutados quase sempre entre os professores saídos da Escola Normal, que se espalhavam pelo Estado todo’”.
Cartão postal com foto da fachada da Escola Normal de Piracicaba. Da Cápsula do Tempo da Escola Estadual "Sud Mennucci", selada em 1922 e reaberta cem anos depois. Acervo da Câmara Municipal de Vereadores de Piracicaba.
Com efeito, Marcelino Ritter (citado por POLACOW, 2013), um dos membros do grupo, escrevendo em ocasião do falecimento de outro grande integrante, Léo Vaz, atesta o ambiente formativo do grupo, atribuindo-o ao grupo político de Prudente de Moraes e seu irmão Moraes Barros, poderosos políticos que determinaram grande parte do rumo do país no início da República, indiretamente fazendo alusão às reformas escolares que beneficiaram Piracicaba no final do séc. XIX e início do XX, das quais fizeram parte a implantação da Escola Complementar, depois Escola Normal:
(...) foi em Piracicaba que Léo Vaz viveu parte da infância, a adolescência e a mocidade e justamente num tempo em que se registrou naquela cidade uma admirável florescência intelectual. É de fato curioso o haver podido o modesto burgo piracicabano de então formar e abrigar em seu seio, e particularmente no jornalismo, grupo tão numeroso de notabilidades, das quais ainda se lembram com saudades um Antoninho Pinto e um Osório de Souza, Pedro Crem e Pedro Krahenbuhl, Juquinha da Silva, João Silveira de Melo, Thales de Andrade, Sud Mennucci, Arruda Camargo, Breno Ferraz do Amaral, Gustavo Teixeira e tantos outros (...) O fenômeno talvez se explique com o fato de, graças a Prudente de Morais, ao senador Morais Barros e à projeção social e política dos membros todos das duas ilustres famílias ali constituídas pelos dois grandes ituanos, terem podido os piracicabanos pensar em grande a partir de então, libertos de modorrentas questiúnculas locais. (POLACOW, 2013)
José Maria Ferreira (1991) fez a comparação do “Grupo de Piracicaba” com o “Grupo de Bloomsbury”, de intelectuais ingleses, sendo alguns de seus integrantes Virgínia Woolf, E. M. Forster, Charles Morgan, May Sinclair, Rosamond Jehmann, Clive Bell, Roger Fry, John Maynard Keynes, entre outros. Enquanto que, vindos da Escola Normal de Piracicaba, atuantes na cidade, mas principalmente em São Paulo, tínhamos Tales Castanho de Andrade, Sud Mennucci, Léo Vaz, Marcelino Ritter, Mário Neme, Brenno Ferraz do Amaral, Cincinato Braga, Lourenço Filho, Jacob Diehl Neto, Hélio Hoeppener, Octacílio de Barros e outros. Até onde se possa comparar dois ambientes intelectuais e sociais tão diferentes, Ferreira chamou o grupo de piracicabanos de “Bloomsbury Caipira”.
Entre os jornalistas e escritores vindos da Escola Normal e os “bloomsberries” ingleses, havia em comum o fato de serem um grupo mais ou menos coeso de intelectuais. De resto, é interessante verificar a diferença entre o modernismo representado pelo grupo de Virginia Woolf e a modernidade do “Grupo de Piracicaba”: enquanto o primeiro tinha pretensões abertamente revolucionárias, na quebra das convenções literárias e comportamentais da Era Vitoriana, adeptos do amor livre e entre sexos, os jornalistas e escritores formados na Escola Normal piracicabana eram moralmente convencionais, conservadores, tinham como modelos autores franceses pré-modernistas e a obra de seu mentor, Monteiro Lobato, moderno porém “quase modernista”. A modernidade dos piracicabanos, comparada com o contexto brasileiro e europeu, estava em outros elementos.
O grupo foi uma “ponta de lança” da cultura, erudição e política na capital paulista, profissionais de alta competência cuja atuação não se separa da produção intelectual paulista da época, sendo em várias frentes seus condutores. Exerceram suas atividades em três campos afins, em consonância com a atividade de seu mentor e padrinho Monteiro Lobato: o jornalismo, a literatura e a educação. Em mais uma atividade na qual Lobato foi figura decisiva no Brasil, o empresariado, alguns deles também atuaram, ao fundarem jornais como o “Diário da Noite” e a “Folha da Noite”, do qual se originou o Grupo Folha.
Todos tiveram atuação que se confunde com a história paulista dessas três áreas. Três deles ocuparam cargos de direção no jornal “O Estado de São Paulo”: Léo Vaz, Marcelino Ritter e Sud Mennucci. Os outros, quase todos, trabalharam na redação ou foram colaboradores assíduos do veículo, daí a associação do grupo com o jornal.
"Revista do Brasil" de fevereiro de 1919. A publicação era a mais influente do país, no começo do século XX. Dentre outros colaboradores, no sumário encontramos os piracicabanos Léo Vaz e Francisco Iglésias. Na redação, além de Monteiro Lobato e Martim Francisco, os piracicabanos Sud Mennucci e Brenno Ferraz do Amaral. Era o "Perigo Piracicabano" do qual falou Lobato. Acervo da Biblioteca Digital da Unesp, disponível em https://bibdig.biblioteca.unesp.br
Léo Vaz foi secretário de redação da Revista do Brasil, de Monteiro Lobato, a partir de 1918. Na época, era uma das revistas mais influentes do país. Pedro Ferraz do Amaral, em seguida, também assumiu o mesmo cargo e depois foi convidado por Lobato a integrar o staff editorial da Editora Monteiro Lobato & Cia (POLACOW, 2013).
Capa da 4a edição, de 1921, do romance "O Professor Jeremias", de Léo Vaz, editado pela Monteiro Lobato e Cia. Editores. Com este livro, lançado em 1920, Vaz chegou a ter seu estilo comparado ao de Monteiro Lobato, pelo vocabulário e também pela ironia. Foi sucesso de crítica e público, tendo vendido mais de 100.000 exemplares, cifra astronômica para o Brasil iletrado e com indústria editorial incipiente.
Vários membros do grupo tiveram sucessos de venda e de crítica, alguns na editora de Lobato: Léo Vaz com “O Professor Jeremias” (best seller que vendeu mais de 100.000 exemplares, cifra enorme para a primeira metade do século XX no Brasil); Tales de Andrade com “Saudade”; Mário Neme com “Donana sofredora” e “A Mulher que sabe latim”; “Cidades vivas”, de Brenno Ferraz de Amaral, e outros.
Membros como Mário Neme prestaram serviços ao estado de São Paulo como diretor do Museu do Ipiranga de 1960 a 1973. Neme foi também um dos fundadores, em 1942, da Associação Brasileira de Escritores (na qual foi objeto de uma polêmica sustentada por Oswald de Andrade).
Outros tiveram participação na política de forma bastante influente, como Brenno Ferraz do Amaral: “até um presidente da República, o sr. Washington Luis, desejou ouvir-lhe os conselhos sobre a condução de nossa política financeira, convocando-o para uma audiência especial no Palácio do Catete” (LOSSO Netto, 1975, citado por POLACOW, 2013). Teve artigos de jornal elogiados por Ruy Barbosa, reproduzidos em jornais da capital federal. Foi um inflamado militante na Revolução de 1932, organizando comícios, conclamando os paulistas a pegarem em armas, escrevendo e imprimindo panfletos que se tornariam clandestinos, inclusive lutou como soldado nas batalhas da revolução.
Marcelino Ritter também teve papel importante na política paulista na época da Revolução de 1932, tendo trabalhado sob a chefia de Armando de Salles Oliveira, na época editor-chefe do “Estadão”. Após a revolução, Ritter foi incumbido de fazer a ponte entre os paulistas e o governo federal, para “desarmamento dos espíritos”, tarefa que, segundo consta, foi bem-sucedida (“O Estado de São Paulo”, 16/02/1974).
Um de seus membros chegou a exercer função com cargo político eletivo: Cincinato Braga, membro do grupo político de Prudente Moraes, foi eleito deputado em 1891 com 27 anos e teve longa carreira parlamentar. Também foi escritor influente na área de política e economia.
No campo da educação, duas figuras que pertenceram ao grupo destacaram-se como gigantes da renovação da área no Brasil, embora em campos opostos: Sud Mennucci e Lourenço Filho.
Ambos formados na Escola Normal de Piracicaba, e também com ampla participação na imprensa e política da capital paulista. Mennucci era ardoroso defensor das Escolas Rurais, movimento que defendia a criação de escolas próximas às famílias do trabalhador do campo, como já exposto neste trabalho. Lourenço Filho, por outro lado, integrava o movimento da Escola Nova, inspirado por vários teóricos da pedagogia europeia, que renovou a educação brasileira por ser um dos primeiros, em território brasileiro, a defender a promoção da autonomia do aluno. A Escola Nova defendia que o estudante rural devia ser trazido à cidade, e não mantido no campo.
Lourenço Filho, embora não tenha nascido nem se formado em Piracicaba (era natural de Porto Ferreira e tinha se formado pela Escola Normal de Pirassununga), foi professor da Escola Normal piracicabana e aqui despontou como profissional. Fundador da “Revista de Educação”, instalou na Escola Normal piracicabana um laboratório de psicologia em desenvolvimento educacional que levou à criação dos “Testes ABC”, que depois foram adotados em todo o Brasil e em alguns países da América Latina. Foi chefe de gabinete do Ministério da Educação e diretor da Universidade do Distrito Federal (então, no Rio de Janeiro). Foi Secretário Estadual de Educação de São Paulo em 1930. Como pesquisador em Pedagogia, escreveu “Introdução à Escola Nova” em 1927, um dos livros-base do movimento educacional. Suas contribuições à Psicologia Educacional no Brasil são enormes.
Sud Mennucci, em sua atuação como delegado regional de ensino, criou mais de 30 escolas rurais em Piracicaba. Criou outras tantas em cidades próximas. Ideia que repercutiu por todo o país. Também foi Secretário Estadual de Ensino de São Paulo por um breve período, em 1931. Trabalhou no “Estadão” e em vários outros jornais da capital, tendo inclusive fundado uma revista, a “Arlequim”. Foi diretor da Imprensa Oficial do Estado. Foi duramente criticado por dois motivos: ter apoiado o regime totalitário de Getúlio Vargas e por conta desse apoio, ter exercido o cargo de editor-chefe, entre 1943 a 1945, do jornal “O Estado de São Paulo” durante o período de intervenção federal no veículo. No entanto, suas contribuições à educação brasileira foram tão grandes, à parte suas filiações políticas, que muitas homenagens lhe foram feitas. A Escola Normal de Piracicaba, de onde saíram os membros do “Grupo de Piracicaba”, recebeu o seu nome ainda em vida do homenageado, no ano de 1945.
Outros tantos membros fizeram parte do “Grupo dos piracicabanos de ‘O Estadão’”, que Marcelino Ritter, em artigo no veículo paulistano de 1965, afirma: “Não os enumero para não parecer que estou exagerando”. Ritter prossegue: “Dificilmente terá podido outra pequena cidade [Piracicaba], como ela então, dar-se ao luxo de ostentar tantos talentos em sua juventude” (citado em POLACOW, 2013).
É de se notar, portanto, que o “Grupo de Piracicaba”, longe de ter defendido uma ruptura com valores tradicionais, como fizeram os Modernistas brasileiros ou os vanguardistas do “Grupo de Bloombsbury” britânico, tenha se destacado na defesa da modernidade técnica, atuando como ponta de lança na criação de universidades como a USP, em movimentos educacionais, como das Escolas Rurais e da Escola Nova, defendido a autonomia e liberdade na Revolução Constitucionalista de 1932, além de terem contribuído com a escrita da história de São Paulo, seja pela pesquisa acadêmica, como o fez Mário Neme, ou por sua atuação na imprensa em causas públicas por mais de meio século.
Tanto o grupo se confunde com a “Modernidade”, mais do que com “Modernismo”, que José Maria Ferreira chega a propor que outros intelectuais e artistas da mesma época possam ser considerados do grupo, como os maestros Fabiano Lozano e Benedito Dutra Teixeira, os pintores Alípio e Antônio de Pádua Dutra, o jornalista Antonio Oswaldo Ferraz e a pedagoga e escritora Jaçanã Altair Pereira Guerrini, os poetas Francisco Lagreca e Hildebrando de Magalhães.
A "Apologia da Arte Moderna", do poeta piracicabano Francisco Lagreca, foi lançado em 1923, ainda sob influência da polêmica levantada pela Semana de 22. No entanto, não convenceu a crítica, que o acusou de não entender o que era a Arte Moderna. Muito menos os modernistas, pois ainda escrevia de forma bastante calcada no parnasianismo. A ilustração da capa é do artista piracicabano Octávio Prates Ferreira.
(Um parêntese: o poeta piracicabano Francisco Lagreca, personalidade marcante em São Paulo um pouco antes dos membros dos “piracicabanos do Estadão”, formado em Direito na Faculdade do Largo do São Francisco em 1906, secretário do jornal “Diário da Manhã” em 1909 e colaborador de vários veículos como “Diário de São Paulo”, “A Manhã”, “Jornal do Comércio”, “A Cigarra”, teria participado do grupo dos modernistas de 22, segundo ELIAS Netto [2000], sem citar fontes. Custa-nos crer em tal fato, quando nos lembramos que Aracy AMARAL [1979] cita Lagreca, em seu livro fundamental sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, como um “observador neutro da facção contrária”. Lagreca pode ter mudado de ideia, tendo escrito e publicado o livro “Apologia da Arte Moderna”, em 1923. Mas depreende-se da leitura do livro que Lagreca não entendeu o que era a Arte Moderna, sendo inclusive acusado de oportunismo por Sérgio Milliet [citado por PRADO, 2015]. Por isso não se tornou um destacado membro dos modernistas. Além do mais, sua escrita estava calcada no parnasianismo, longe das referências dos Andrades, Menotti Del Picchia e Raul Bopp. Lagreca, enfim, sequer é citado por críticos literários quando se fala de autores modernistas, de qualquer geração).
O que todos eles tinham em comum era a qualidade do que produziam, a promoção que uns faziam dos outros nos veículos de imprensa, principalmente em São Paulo (todos escreveram ou atuaram na capital paulista) e a forte influência que tiveram em suas áreas.
É a esse grupo, formado por piracicabanos aqui nascidos, formados ou atuantes, de intelectuais, artistas, jornalistas, pedagogos, pesquisadores e políticos, que queremos contrapor aos modernistas brasileiros como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sergio Milliet, Menotti Del Picchia, Heitor Villa-Lobos e outras figuras. A maior parte deles em algum momento esteve na “Noiva da Colina”.
As figuras que formam, no imaginário piracicabano, uma “época de ouro”, e que tinham tanto peso quanto os “papas do futurismo” paulistano, reconhecidos ao menos em sua época, contrapõem-se ou aliam-se aos modernistas brasileiros? Possuem pontos de contato com a vanguarda da Pauliceia desvairada ou foram a sua nêmesis?
Continua no próximo domingo, dia 08/01/25.
O livro “Modernidade Caipira e o Modernismo de 22 em Piracicaba” é resultado da pesquisa apresentada pelos autores ao Sesc Piracicaba em 2022, que resultou em uma atividade de turismo cultural, “Por Onde Andaram os Modernistas em Piracicaba”, realizado no período de setembro a outubro de 2022.