Publicaremos, dividido em vários postagens, o livro editado pelo IHGP (Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba) em 2023, de autoria de Fábio San Juan e Romualdo da Cruz Filho. O livro é resultado da pesquisa apresentada pelos autores ao Sesc Piracicaba em 2022, que resultou em uma atividade de turismo cultural, “Por Onde Andaram os Modernistas em Piracicaba”, realizado no período de setembro a outubro de 2022.
As postagens serão feitas aos domingos e quarta-feiras, e são abertas a todos.
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Capa do programa da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, de autoria do artista Emiliano Di Cavalcanti, um dos organizadores do evento.
O desejo de ser moderno
A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal da cidade de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, é apontada como o primeiro evento realizado no Brasil a apresentar obras de arte visuais, literárias e musicais criadas a partir das poéticas das vanguardas europeias da época, como futurismo, cubismo, expressionismo e outras.
Passados cem anos, depois que os participantes do evento lançaram as ondas dos vários movimentos que formam a correnteza maior do Modernismo brasileiro, levando todo o passado da cultura nacional de arrastão, é compreensível que a Semana de 22 e o Modernismo sejam “passados a limpo”. Comparar os frutos daquela Semana com outros locais e movimentações similares, questionar se houve outros eventos artísticos preocupados com a ideia de modernidade no Brasil antes ou na mesma época da Semana, contextualizar esse “marco zero” com uma quantidade de informações maior, incluindo as que não estavam disponíveis no momento em que se fixou a importância do Modernismo no debate crítico brasileiro do século XX, são ações que buscam responder se os objetivos que os próprios modernistas se colocaram foram alcançados depois de cem anos. E se sua influência e militância intelectual lançaram raízes ou se o movimento foi somente uma ruptura revolucionária que abriu portas para ações posteriores.
Desde já afirmando não ser possível comparar o Modernismo, principalmente o paulistano, com outras movimentações, em termos de influência, ao menos se assinale que em outros locais no Brasil houve grupos de intelectuais e artistas preocupados em se juntar ao fluxo da modernidade do século XX, fazendo contribuições dignas de atenção, com todas as implicações culturais de modificações de linguagem e representação simbólica a partir do ponto de vista de um novo tempo, de novas posturas de rebeldia e questionamento, e aparentemente contraditórios, de resgate e ressignificação de tradições.
Dependendo do ponto de partida que se adote, “ser moderno” para uns é ser “passadista”, “retrógrado” ou “ultrapassado” para outros. O neoclassicismo do século XVIII, como defendido pelos iluministas, era uma arte à frente de sua época e o historiador da arte Giulio Carlo Argan defende-a como o primeiro movimento de Arte Moderna no Ocidente. No entanto, a noção de avant-garde, “vanguarda”, ao menos da forma europeia a partir do século XIX, para a qual a inovação e a ruptura com o antigo são valores de base, é estranha para quem defende uma arte com valores eternos e princípios gerados na ideia de um só Bem, Verdade e Beleza. Dependendo portanto, de onde se parta, o neoclassicismo pode ser tanto uma arte revolucionária, porque rompeu com o Barroco ao se propor laico (o Barroco era utilitário, inseparável da religião cristã que o originou), ou retrógrado, ao manter a forma realista e acadêmica de pintar, calcada nos modelos passadistas do Renascimento e do classicismo da Antiguidade greco-romana.
Portanto, para os jovens Mário e Oswald, ou os outros jovens participantes da Semana de 22, eram “ultrapassados” os seus rivais parnasianos, simbolistas e até realistas / naturalistas na literatura, ou artistas que praticassem a art nouveau de um Alfonse Mucha ou o simbolismo de um Gustav Klimt, porque não partiram das vanguardas europeias recentes do expressionismo, cubismo ou futurismo.
Todo esse volteio para dizer: desses grupos, os modernistas de 22 triunfaram navegando na onda do “mais sintonizado com o que se faz hoje na Europa”, uma preocupação cultural que já encontramos, pelo menos, desde que se começa a identificar atividade artística no Brasil Colônia, como entre os arcadistas mineiros, passa pelos mestres barrocos, segue pela adoção, na Corte carioca do início do século XIX, de um neoclassicismo misturado ao barroco/rococó, e da contratação da Missão Francesa, até o estabelecimento da Academia Imperial de Belas-Artes e a criação das versões nacionais dos movimento românticos, realista e naturalista entre nós. E essa vitória aconteceu sobre os despojos de lutas para substituir, ou minimizar, a influência de outros artistas que surgiam, que ainda desdobravam conquistas artísticas baseadas em outras movimentações que tinham em comum com eles o desejo de serem modernos, atuais, enfim, de serem vozes da sensibilidade de sua época, e não de valores eternos, perenes, como defendiam os artistas da linha clássica.
Podemos citar exemplos de movimentações anteriores à Semana de 1922, indicadores de um “desejo de modernizar-se”, como os saraus da Villa Kyrial, do senador Freitas Valle, em São Paulo, realizados entre 1890 e 1920; poetas parnasianos e neoparnasianos como Olavo Bilac, Martins Fontes, Francisca Júlia da Silva e Coelho Neto; prosadores como João do Rio, Lima Barreto e Monteiro Lobato; na música, Alberto Nepomuceno e o próprio Villa-Lobos, com um olhar nacionalista na linguagem da música erudita; nas artes plásticas, Eliseu Visconti, Castagneto e Georgina de Albuquerque, empregando técnicas impressionistas, simbolistas e art nouveau em suas obras sem vinculação estrita aos movimentos; Lasar Segall trazendo o expressionismo para o Brasil já em 1913, assim como Anita Malfatti em 1914, sem repercussão; J. Carlos, Belmonte e K. Lixto, ilustradores e cartunistas vanguardistas, já com estilo “art déco”, inspirados por artistas gráficos simbolistas ingleses.
Saraus com fartos banquetes eram oferecidos pelo senador Freitas Valles na Villa Kyrial, em São Paulo. Freitas Valle e dona Olívia Guedes Penteado, cada um em seu salão, foram responsáveis por ambientes onde aconteciam os encontros entre os artistas na cidade de São Paulo entre 1890 e 1925. Na extrema direita, à frente, Mário de Andrade. Autoria da foto: desconhecida. Reproduzida em https://www.kyrialclinica.com.br
Pouquíssimos artistas, no entanto, em quase nenhum local, reuniram um grupo, que marcasse em um “evento de lançamento” o manifesto de sua existência, e com isso, marcassem alterações no modus operandi dos artistas brasileiros de forma tão profunda como fizeram os modernistas. Diríamos que os jovens organizadores da Semana que ocorreu no faustoso ambiente eclético do Teatro Municipal de São Paulo tinham o que chamamos hoje de “senso de marketing”. Pois mesmo Mário de Andrade admite que havia mais a vontade de derrubar ícones do que uma orientação estética bem definida para fazê-lo. Neste sentido, a Semana foi mais um manifesto de desejo de mudança, de ser irreverente e de inovar, do que uma apresentação de obras já realizadas. Poucos já tinham efetivamente o que mostrar que tivesse mais consistência, dentre eles, Heitor Villa-Lobos. Ou seja, a Semana de 22 foi a exposição de um projeto, e não uma mostra de conquistas já alcançadas.
Lastreado em outras referências, embora algumas delas fossem comuns aos modernistas paulistanos, formado por artistas não referenciados em vanguardas “alienígenas” (como se chamava na época o que era estrangeiro), teve origem na cidade de Piracicaba o “Grupo de Piracicaba”, também conhecido como os “Piracicabanos do Estadão”, ou ainda, o “Bloomsbury Caipira”.
Fabiano Lozano (ao centro) com o coral “Orfeão Piracicabano”, em 1929, nas escadarias do Colégio Normal de Piracicaba (hoje, Escola Estadual “Sud Mennucci”). A atuação de Lozano na Universidade Popular, no ensino de música nos colégios de Piracicaba e na Sociedade de Cultura Artística coloca-o como principal figura da cultura piracicabana da primeira metade do século XX.
Esse grupo, nunca institucionalizado nem possuidor de liderança formalizada, era, no entanto, ao estilo do “Grupo de Bloomsbury” britânico, afinado o suficiente para demonstrar coesão, ferramentas intelectuais e bagagem cultural que, demonstramos ao longo deste trabalho, originaram-se na formação que receberam na Escola Normal de Piracicaba nas primeiras décadas do século XX. Procuramos demonstrar o quanto esse grupo é resultado do rico ambiente cultural piracicabano que se originou no século XIX e que floresceu até meados da década de 1950.
Portanto, antes de apresentar o grupo e suas obras, é necessário mostrar os fatores que contribuíram para que Piracicaba se tornasse um centro culturalmente dinâmico e atrativo logo nas primeiras três décadas do século XX. O período, de forte produção intelectual e artística na cidade, coincide com o surgimento do movimento do Modernismo nas artes brasileiras, que tem 1922 como um de seus marcos iniciais.
Continua na próxima quarta, dia 04/12/24.