Pequena História do Desenho de Humor em Piracicaba (01)
Os primeiros artistas gráficos da Terra do Humor
Capa do livro de Francisco Lagreca, de 1923, com ilustração de Octávio Prates Ferreira, o primeiro chargista de Piracicaba.
A cidade de Piracicaba já foi reconhecida internacionalmente como a Terra do Humor, devido ao seu Salão de Humor que é promovido, sem interrupções, desde 1974 até hoje.
Mas a cidade tem outros artistas que não estiveram na esfera do Salão, não surgiram nele, são bem anteriores e têm história, como os pioneiros Octávio Prates, autor da primeira charge publicada na cidade, e Edson Rontani, desenhista do mascote do time de futebol do XV de Novembro da cidade, o “Nhô Quim”.
Miguelzinho precursor. Podemos dizer, esticando o conceito “humor gráfico”, que Miguel Dutra, o Miguelzinho, o primeiro artista atuante em Piracicaba, no século XIX, realizou desenhos que podem ser considerados humorísticos.
Embora o humor gráfico se caracterize pela técnica, normalmente a gravura (xilogravura, gravura em metal, litogravura) ou pelo meio em que é divulgada (jornais e revistas impressas), podemos considerar alguns desenhos de Miguelzinho de tipos humanos, como o “Pedinchão” (uma pessoa que esmolava nas ruas, com um “oratório de viagem”, um tipo de altar portátil), como desenho feito para causar riso, na tradição de Leonardo da Vinci com seus grotteschi (desenhos grotescos). Ou seja, um tipo de caricatura.
Miguel Dutra. Pedinchão. Aquarela. 1835. Acervo do Museu Paulista, São Paulo.
Porque há tão poucos desenhos nos jornais mais antigos. Iriam demorar 82 anos para uma obra visual de humor aparecer novamente em Piracicaba.
Embora já houvesse jornais periódicos desde 1874, com O PIracicabano, outro com o nome de O PIracicaba, em 1876 e a A Gazeta de Piracicaba, que durou mais tempo, de 1882 a 1935, (jornal que não possui relação com o atual jornal de mesmo nome), assim como o Jornal de Piracicaba, de 1900 (ainda publicado), nenhum desses veículos publicou algum desenho ou conteúdo de humor gráfico até 1917.
Capa do jornal “O Piracicaba”, de 16 de novembro de 1877. Note a ausência total de imagens, e também de manchetes em letras garrafais.
É necessário lembrar que os jornais e revistas eram publicados no sistema da tipografia. O sistema funciona como carimbos que são pressionados com tinta sobre o papel, com uma prensa; cada letra e cada imagem são carimbos, montados em uma caixa. Os carimbos das letras eram chamados de “tipos”; os carimbos das imagens tinham o nome de “clichês”. Os tipos eram mais baratos, embora possuir tipos suficientes para montar jornais de 4 a 8 páginas, como eram mais comuns em Piracicaba no início do século XX, demandassem um investimento inicial considerável: os tipos eram fundidos com chumbo, um metal não muito durável, que se gastavam com o tempo.
Os clichês tinham que ser feitos em São Paulo, em oficinas especiais chamadas “clicherias”. Qualquer foto ou desenho tinha que ser enviada para ser feita em São Paulo. Até o início da década de 1950, Piracicaba não dispunha de clicheria. Por isso, os jornais tinham imagens quase exclusivamente nos anúncios publicitários.
Página 4 do jornal “O Piracicaba”, de 16/11/1877. Somente os anúncios tinham imagens, e ainda assim eram poucas.
Quando uma personalidade muito marcante falecia, como Prudente de Moraes, primeiro presidente civil do Brasil, e residente em Piracicaba, se providenciava clichê de foto do falecido para a capa. Certamente, porque o jornal tinha venda garantida e o investimento teria retorno.
O primeiro desenho de humor da imprensa de Piracicaba. Em 1916, porém, o “Jornal de Piracicaba” investiu em um processo diferente de gravação e impressão de imagens, a zincogravura, que em vez das matrizes tipo “carimbo” dos clichês, usava matrizes em zinco, cobre, latão ou alumínio.
Funciona assim: o artista gravava o desenho pressionando ferramentas, mais ou menos como um estilete, gravando sulcos sobre a matriz; essa matriz era entintada, a tinta entrava nestes sulcos; o papel era pressionado contra a matriz entintada e o desenho era impresso sobre o papel.
O jovem artista Octávio Prates Ferreira realizou, a partir de 1916, várias ilustrações para o JP neste processo, que permitia mais flexibilidade, por ser mais barato que o dos clichês.
Graças a esse processo e à colaboração de Prates, em 1917, o JP publicou o primeiro desenho de humor de nossa imprensa.
O desenho foi publicado no dia 28 de fevereiro de 1917, e já apresenta o que seria uma definição recorrente da arte praticada na “Noiva da Colina”: o apelo à paisagem do rio, com ênfase no Salto e na Rua do Porto.
“Setarpo” é o pseudônimo do artista, seu nome ao contrário "(O.Prates - setarp.O). Sem modéstia, ele se coloca ao lado dos artistas mais reconhecidos da cidade na época, Joaquim Dutra e Joaquim de Mattos. Na cama, uma mulher que representa a Arte, doente, aparentemente à beira da morte. Vamos às legendas, na ortografia da época:
SETARPO: Então como vae a enferma, mestre?
MATTOS: Já empreguei todo o recurso para animal-a, acho-me exgotado e sem coragem para levar o meu emprehendimento avante.
DUTRA: Qual, ella que tenha esperança, porque ha de durar emquanto nesta cidade existir o Salto e a Rua do Porto.
Sobre os tipos de Desenho de Humor. é difícil dizer se o desenho de Prates é uma charge ou um cartum. É inegável, porém, que os personagens são representados na técnica da caricatura. Abaixo, os tipos de Desenho de Humor:
Caricatura: é um retrato de uma pessoa existente, real, mas distorcido, com a intenção de provocar riso. Existem caricaturas mais realistas e outras mais distorcidas. É quase consenso entre os artistas de humor que, quanto mais distorcida a caricatura, melhor, mais condizente com a brincadeira que ela propõe, mas sempre com a condição que se reconheça a figura retratada. É bastante usada junto com a charge.
Caricatura do político e economista Delfim Netto, de Baptistão.
Cartum: é uma piada visual, acompanhada ou não de textos (legendas ou balões) que não depende de acontecimentos da atualidade. Um desenho de uma pessoa escorregando numa casca de banana é o exemplo mais simples de um cartum: pode gerar riso em qualquer época. Ou do cartum abaixo.
Cartum de Fábio San Juan.
Charge: é uma piada visual que comenta fatos da atualidade. É, portanto, datada. A imprensa sempre a utilizou como uma forma de fazer piada a partir do noticiário.
Charge de Fortuna, de 1981, comentando o crescimento zero do PIB brasileiro naquele ano.
A piada que Setarpo fez sobre o estado "moribundo” da Arte (em 1917!!!) poderia ser feita hoje, em 2024, e assim a rotularmos de cartum, mas penso que, por utilizar personagens muito conhecidos naquela época e local, os quais temos dificuldade em reconhecer hoje, podemos chamar o desenho de charge.
Prates seguiria uma carreira de ilustrador na imprensa de São Paulo, embora tenha colaborado com jornais e revistas importantes, como “o Estado de São Paulo”, “A Vida Moderna”, A Cigarra”, e outras.
Prates seguiu carreira como professor e diretor de escola, não atuando mais no campo da ilustração a partir da década de 1930, embora continuasse produzindo telas a óleo que foram expostas em concursos, como os Salões de Belas-Artes de Piracicaba, e outros. Faleceu em 1975.
OBS: algumas das informações sobre Octávio Prates Ferreira foram fornecidas por Francisco Ferreira, seu sobrinho-neto, que escreveu um livro sobre o artista, que será lançado em outubro de 2024. Agradecemos o autor pelas informações.
Continua…
No próximo capítulo: as encarnações do Nhô Quim, mascote do XV