Claude Debussy, caricatura de Fábio San Juan.
Mozart me deixa alegre. Chopin, emocionado, e nem sei com o que, talvez com a própria beleza. A “Rhapsody in Blue” de Gershwin me deixa feliz. A “Bachiana Brasileira” n.o 4 resolve a minha tristeza banal com uma tristeza muito melhor elaborada, é pura catarse. Bach tem o poder de elevar os meus pés do chão, cabeça, coração e estômago, tudo. De pequeno, triste, sujo e pobre, ele me transporta e me faz ganhar novamente a fé. Se Deus é a Beleza, então é em direção Dela que voo, quando ouço Bach.
Não consigo, porém, explicar Debussy. Sons e silêncio; pausas como sombras, notas como luz. Óbvio, mais que dito? Sim, claro, como o luar de Claude Debussy.
Não quero usar o termo impressionismo e não o usarei. Se o próprio compositor não gostava dele, irei respeitar sua vontade, mesmo que isso não acrescente um único til na beleza da sua obra inteira.
Falarei da minha afinidade eletiva para com a peça para piano“La fille aux cheveaux de lin” (“A menina com cabelos de linho”), um de seus “Prelúdios”. Como dizer “sublime” com outras palavras? Direi do jeito que posso, que é comparar com uma obra visual, linguagem artística que conheço melhor que a música: “La fille...” está na música como está “Mulher com guarda-sol (O passeio)”, de Monet, para a pintura.
Ambos os artistas apanharam as sementes no lugar que somente os poetas sabem onde fica, cultivaram suas flores e as espalharam. Colhê-las, colhemo-as nós. Num tempo de suspensão. Um “tempo da delicadeza, onde não diremos nada, nada aconteceu”.
Mulher com guarda-sol”, também conhecida como “O passeio”. Monet utilizou a esposa Camille e o filho Jean como modelos. 1875. Óleo sobre tela. Acervo da National Gallery, Washington DC, EUA.
Mas não era minha intenção comparar Debussy e Monet, quando liguei o computador para escrever. Quis comparar o francês ao brasileiro Antonio Carlos, que era de Almeida Brasileiro, porém muito propriamente, o nosso Tom Jobim. Que, custa crer, faz 30 anos faleceu, que se deu em 08 de dezembro de 1994.
Debussy compôs o “Prèlude à l'après-midi d'un Faune” (“Prelúdio à tarde de um fauno”). Uma peça sensualíssima, que descreve um fauno dedilhando sua flauta e que fica excitado com belas ninfas passando. Tom Jobim compôs vários “hinos” à mulher brasileira, não só porque estava acompanhado de Vinícius, um fauno conhecido, mas também sozinho. E não foram somente hinos ao corpo feminino e suas emanações, como em “Garota de Ipanema” e “Gabriela”, mas também sobre o encanto, a fascinação, que a mulher exerce sobre o homem, em “Luiza”; além da falta de habilidade desse homem em lidar com esse mistério, em “Lígia”. Todas podem ser rotuladas de música romântica. Seria o caso de dizer que exagero, levando a “música romântica” a um outro patamar? Se você se fez essa pergunta, bem, escute qualquer música romântica de Nando Reis… vamos dizer, “Por onde andei”, que é música romântica com uma poesia que considero boa de verdade. Mas compare com “Ana Luiza”, e depois voltamos a conversar.
(Pensando bem, ô comparação desleal. Nando Reis não tem chance nenhuma).
Os temas sensuais não são o único ponto em comum entre Debussy e Jobim. O brasileiro queria ter sido pianista, e conta em uma de suas entrevistas que chorou no dia em que sua professora de piano disse que ele nunca seria um pianista erudito, de concertos. Penso no quanto custou a ele simplesmente contar isto: sempre primou pela discrição, nunca foi de ficar se gabando ou ficar exibindo seus sentimentos em público. O trocadilho que fazia, “meu problema é de piano (edipiano)”, pelo fato de sua mãe ter comprado, para o colégio do qual era dona, um piano, e com o qual se encantou, mesmo sendo “coisa de menininha”... explica alguma coisa? Não sei, mas quis contar a história. Onde queria chegar? Debussy sempre foi um dos seus compositores preferidos, e talvez sua principal influência musical.
É evidente, mais que evidente, quando fazemos outra comparação. Esta é mais direta, pois é feita entre duas músicas. As duas se abraçam e se encaixam como dois amantes. “La fille aux cheveaux de lin” são respingos de tinta sobre uma tela, e com eles Debussy vai pintando, contando com os espaços em branco do suporte. “Chovendo na Roseira” são as pétalas de rosa espalhadas pelo vento, são as notas respingos de chuva sobre o piano. A chuva cai das pétalas e molha a partitura.
(Pode soar pedante. Mas descobri que o tema principal de “Chovendo na Roseira” é desenvolvido na nota sol. Chove na roseira, a chuva “limpa o céu e traz o azul”. O sol. O sol. Otimismo, alegria, delicadeza, na poesia e na música.)
Nas versões com ou sem letra, o piano é todo Tom, mas também é todo Debussy. A menina com cabelos de linho dança no meio do roseiral.
Tom Jobim sempre dá a impressão de saber muito mais do que demonstra. E, sempre, sabe muito mais do que nós. Mas quais sejam os seus conhecimentos por nós ignorados, uma parte deles aprendeu com o compositor de “Clair de Lune”.
"A menina com cabelo de linho" é uma das minhas preferidas do Debussy. Sinto o tempo parar sempre que a ouço. "Beau soir" é outra que me faz tocar a eternidade. Existe algo mágico na música do Debussy, algo inexplicável.
Parabéns pelo texto!
Que texto lindo, sensível, incrível!! Parabéns!!