Maio 19, 2024

O almoço estava sendo preparado na mansão dos Toledo e o perfume do assado se espalhava pela casa. O último domingo de cada mês era reservado para as reuniões familiares, quando os três sobrinhos vinham almoçar com tia Alice, herdeira da fortuna da família.

Mulher enérgica, de caráter forte e dotada de extrema elegância, conduziu os negócios e multiplicou a renda proveniente das terras da fazenda, depois que o único irmão e sua cunhada morreram em um grave acidente de carro, deixando três filhos ainda crianças, amorosamente acolhidos pela tia.

Naquele domingo chovia, e a senhora observava atenta ao crepitar do fogo em frente à lareira, coberta por manta colorida, por ela mesma tricotada. Trazia um olhar profundo e compenetrado quando Lucas entrou na sala com a esposa e os dois filhos pequenos, correndo em direção à tia e fazendo barulho para abraçá-la.

Assustada, Alice se encolheu e afastou as crianças, dirigindo-se ao sobrinho: – Quem são vocês?

A piora da memória da tia era a cada dia mais evidente, e Lucas precisava muito quitar as dívidas de seu escritório de advocacia, sem clientes suficientes para pagar seus boletos e manter as aparências de gente rica e bem-sucedida.

Por mais dinheiro que tivesse, tia Alice manteve a rédea as mesadas e auxílios financeiros, acreditando que os meninos precisavam conquistar a independência financeira pelos seus próprios esforços.

Rafael chegou em seguida, acompanhado pela numerosa família, composta pelos três filhos adolescentes e sua esposa apinhada de joias e roupas caras, mesmo sabendo que não conseguiria pagar a fatura do cartão de crédito.

– O que vocês fazem aqui?

Cada vez mais encolhida, tia Alice parecia transtornada ao ver tanta gente “desconhecida” espalhada pelos sofás e poltronas da sala, rindo alto e fazendo algazarra.

Quando Daniel, a esposa e o bebê chegaram, deram de cara com a tia em meio a um surto, gritando e pedindo que parassem o barulho, exigindo explicações. Aproximou-se dela com a criança no colo e seu semblante passou de irado a enternecido, acalmando suas emoções e fazendo a tia entoar uma das suas antigas canções de ninar.

Atormentado pela dificuldade em equilibrar o orçamento com a chegada do filho, Daniel só pensava no dia em que colocaria as mãos na sua parte da herança e pudesse proporcionar uma vida digna de princesa para a esposa não precisar mais se submeter ao trabalho.

Para aliviar a tensão geral e trazer de volta a harmonia familiar, foram as esposas para a cozinha, preparar um chá bem quente para acalmar e confortar a tia, que olhava para a lareira perdida em seus devaneios e balançava o corpo exasperada. A tia aceitou a xícara e, obedientemente, sorveu o chá enquanto seu corpo sentia o alívio.

Tomaram seus lugares à mesa, posta com requinte e fartura, enquanto a dona da casa continuava observando a todos com ares de desconfiada. “Quem será essa gente? Quando eles irão embora? De onde vem tanta criança? O que eles fazem aqui? ”. Cheia de perguntas sem respostas, tia Alice, mecanicamente, levava o garfo à boca silenciosa e intrigada.

Conforme o almoço era servido, iam-se apagando os pensamentos de Alice. A escuridão foi ficando cada vez mais intensa, o vazio do cérebro cada vez maior, e o esforço para reviver lembranças era insuficiente e penoso.

Sentiu-se cansada. Foi tomada pela paz da ausência das memórias e a luz se apagou definitivamente quando ela caiu em cima a sobremesa.

– Tia Alice viveu bem. Chegou a sua hora. É o que se dizia.

No final do cortejo fúnebre, três esposas enlutadas derramavam lágrimas de felicidade pela eficiência de uma simples xícara de chá. Seus problemas estavam resolvidos.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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