Maio 11, 2024

Quando um homem sente frio e fome, é impossível prever o que ele é capaz de fazer.

Tiago sentia frio e fome no final daquela tarde. Sabia que seria mais uma noite de insônia pelo desconforto sob a laje da igreja matriz, coberto por jornais e acompanhado pela bebida alcoólica de má qualidade que pudera comprar com o dinheiro das esmolas do dia. Doía-lhe a barriga e enrijeciam-se os músculos, cada vez mais contraídos pelo vento gelado que anunciava o anoitecer.

Joana se preparava para o plantão noturno na Santa Casa da cidade. Amamentou o filho, orientou o pai da criança com os cuidados essenciais e saiu com o coração partido, ansiosa pelo retorno. Pegaria a condução até a praça central, de onde chegaria a pé à enfermaria do hospital.

Antônio beijou a esposa, afagou o cachorro e se despediu da mãe, acamada e sob seus cuidados. Ajeitou a gola da camisa no espelho e partiu para a garagem da viação, onde conduziria o carro da linha 611 durante toda a noite, com destino à praça central.

Joana sinalizou para o 611 parar. Boa noite, dona Joana! Que bom ver a senhora de novo! Como está a criança? Correu tudo bem com o parto? Joana encheu os olhos de lágrimas – era muito difícil retomar o trabalho depois de ser mãe. Foi tudo bem, seu Antônio. Só quero voltar logo para casa.

Corpo adormecido pela bebida, olhos avermelhados e visão turva, Tiago observou os faróis do coletivo chegando ao ponto perto da igreja. Cambaleou até o local, determinado a garantir mais uma ou duas doses de cachaça, que talvez lhe esquentasse o corpo e o ajudasse a esquecer o vazio do estômago.

A porta da frente se abriu e, antes que qualquer passageiro pudesse descer, subiu as escadas, apontou uma faca para o motorista e anunciou o assalto. – Todo mundo quieto e parado! Não estou de brincadeira e preciso de dinheiro. Vou passar pelo corredor recolhendo o que tiverem nos bolsos e nas carteiras. É melhor ninguém tentar me impedir, porque eu posso piorar a situação de vocês.

Passageiros aterrorizados buscaram seus trocados. Sentada na primeira poltrona, Joana professava sua fé e tremia com medo de nunca mais ver o seu bebê. Buscou moedas e notas, mas não encontrou.

De faca na mão, Tiago a abordou para receber o pagamento pela sua ousadia. Só lhe interessava um pouco de conforto e o mínimo de dignidade. Sem nada a lhe oferecer, Joana chorou. Do peito escorria o leite, dos olhos escorriam as lágrimas. Ele a puxou pelos cabelos e a tomou como refém, mostrando aos outros que não tinha nada a perder.

Antônio se levantou e argumentou com o bandido, dizendo que aquela atitude era desnecessária e que todos iriam colaborar. Do fundo do ônibus, levantou um rapaz cheio de coragem, que correu para render o ladrão e salvar suas vidas.

Tomado de surpresa, Tiago enterrou a arma no pescoço de Joana, virando-se em seguida para fazer o mesmo com Antônio. Por um momento voltou-lhe a consciência e ele correu.

Não foi difícil a sua apreensão pela polícia. Virou capa dos jornais sensacionalistas e ganhou um lugar na cela da cadeia.

Naquele dia, uma criança ficou órfã, uma mãe doente perdeu um filho e um morador de rua ganhou um teto, com direito a três refeições diárias. – “Agora, sim, posso viver em paz”.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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