Maio 11, 2024

Ana conferiu seu visual no espelho e ficou contente com a imagem refletida. O avental, feito por ela mesma, caía-lhe muito bem sobre o vestido curto e estampado de flores miúdas e coloridas. O cabelo preso emoldurava um rosto rosado, de pele limpa e olhos brilhantes, ávidos por enxergar o que o futuro lhe preparava.

A brincadeira preferida da sua infância era agora o seu ofício, e a desejada cozinha do Bar do Jorge era agora somente sua. Riscou o primeiro fósforo e deu início ao seu talento. Juntou ervas, carnes e batatas e o aroma do tempero se espalhou pelo ar, anunciando que o jantar estava sendo preparado.

No final da tarde os clientes frequentes começaram a chegar. O bar, que antes oferecia salsichas curtidas e amendoins salgados, agora serviria também refeições. Trabalhadores empoeirados, restos de graxa e terra sob as unhas e barrigas cheias de fome foram se acomodando nas cadeiras para experimentar o sabor de Ana.

Equilibrando bandejas e distribuindo sorrisos, ela serviu os pratos e ganhou elogios. Sua refeição e seu jeito alegre e descontraído conquistaram os trabalhadores do bairro e os deixaram com o desejo de querer mais. O dono do bar nunca havia visto fregueses tão satisfeitos e os serviços da nova cozinheira foram definitivamente aprovados.

No dia seguinte, Ana aromatizou os ares e serviu mais famintos que vieram provar sua comida. Ela flutuava pelo salão, realizada por observar o prazer estampado nos rostos de boca cheia e por receber convites para estender a hora do jantar.

Seu desejo de menina se tornava realidade: conquistar os homens daquele bairro pela boca e experimentar sabores alheios.

Começou a prestar serviços extras com o patrão. Sentia necessidade de privilegiar quem lhe dera a oportunidade de empreender.

Quando ele fechou o bar, ela o esperou na cozinha, tendo apenas o avental cobrindo sua pele suada pelo vapor das panelas. Ofereceu a ele toda sua carne, tirou dele todos os sentidos e deixou o homem exausto no escuro do estabelecimento vazio.

A notícia de que Ana agora fazia hora extra trouxe mais homens esfomeados, e a cozinha se transformou em parque de diversões carnais. Para o patrão, o importante era aumentar a clientela. Ana servia refeições e realizava sonhos, era uma mulher de negócios.

Organizou sua agenda para atender a demanda, não queria deixar ninguém passar vontade. Um a um, os homens do bairro foram se saciando dela, e o passar dos dias concretizou os objetivos de agradar seu próprio paladar.

Após atender o último nome da fila, preparou as malas e saiu ainda na madrugada. No dia seguinte não houve refeições servidas no Bar do Jorge. Nada de tempero, nada de afeto, nada feito por ela. Para comer, só salsichas e amendoins. Ana levou memórias e deixou sabor de saudade, partindo para o próximo bairro que iria matar a sua fome.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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