Maio 11, 2024

Para dar um mínimo de sentido a este post, o leitor precisa saber que o texto faz parte de uma série de crônicas publicadas na Revista Viletim, de 2001 a 2003. O periódico era mensal. Dizíamos se tratar de uma revista diária, produzida semanalmente e que circulava uma vez por mês. Marcou época e é muito comum as pessoas que a conheceram perguntar sobre o fim do projeto. Desapareceu com o vento, que mudou de direção. Quem a assina, sou eu, Romualdo da Cruz Filho. Mas o resultado é produto dos desafios literários que travávamos em bares da cidade, enquanto brincávamos com a vida. Bons tempos e bons amigos. Segue a crônica com pequenos retoques:

Quando ele colocou o pé direito sobre a mesa, a expectativa geral era de que alguma coisa ridícula estava para acontecer. Mas seu gesto foi contido pela sua tia Eunice que, num ímpeto de lucidez, segurou-o pelo ombro e sussurrou em seu ouvido:

– Eu arranco a cabeça da boneca se você continuar se comportando como um bailarino do cais.
Ele olhou firmemente para a tia e beijou-lhe os lábios umedecidos pelo licor de manaxe que ela consumia em doses calibradíssimas.
– A boneca já perdeu a cabeça há muito tempo, respondeu ele. A não ser que você esteja se referindo a este maldiçoado vodu que você traz no bolso do sobretudo.
Fred enfiou agilmente as mãos no bolso direito do casaco preto de Eunice e pegou um tubo cheio de cápsulas coloridas. Abriu-o, roubou duas cápsulas azuis e colocou-as na boca.
Sem saber reagir, Eunice notou a euforia das pessoas que estavam assistindo a cena. Uma delas gritou:

– Lance fora esse dinamite e deixe a noite explodir diante dos olhos de cada um de nós com todas as cores da turbulência.
Vendo a postura ébria da tia, Fred achou melhor devolver-lhe o remédio.

– Você está precisando de mais um retoque. Seus olhos nunca estiveram tão decifráveis.
Aproximou-se dela com a boca aberta. Ela, entendendo a intenção do seu animal de estimação, segurou-o pelas orelhas e sugou todo o conteúdo da sua língua.

– Assim você quase me sufoca, disse a tia livrando-se.
– Deixe-me ao menos retribuir esse gesto com esta poesia, que escrevi exclusivamente para esta noite, disse Fred.
Com a voz postada, andando pra lá e pra cá, fingindo lucidez, recitou-a:

A força que estava
naquele gesto roubado
O peso do ar foi maior
que o espasmo premeditado
e tudo soa como se fosse artifício
com uma mesma finalidade inelutável
E você insistia em me ver
antes de a noite provocar
o movimento
Em tudo está o presente
ofertado por engano.

Todos ficaram em pé para aplaudi-lo, mas ele enfiou o pedaço de papel no bolso do casaco e retirou-se abruptamente, demonstrando que tudo nele soava premeditação. A tia seguiu-o com os olhos. Antes de atravessar a porta que daria para o escuro da noite, virou-se para ela e disse:

– A boneca deseja mais um conhaque? Era a frase inexprimível.
Eunice correu para socorrê-lo, porque não era isso que tinham combinado. E ela sabia muito bem que o resultado seria fatal. Mas quando alcançou seus passos, o escuro da noite já havia arrancado os olhos dele, exatamente como ele havia planejado.

Romualdo da Cruz Filho
É editor do Viletim

Romualdo Cruz Filho

Jornalista e, à moda antiga, leitor de livros de papel

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