Maio 12, 2024

Adélia vestiu-se de luto, prendeu os cabelos longos, lisos e pretos num coque discreto, colocou sua sapatilha mais confortável, pegou a pequena bolsa, olhou-se no espelho, fechou a porta atrás de si e saiu para o dia ensolarado.

O Velório Municipal ficava a três quarteirões e, durante o caminho, ia ela passando as contas do rosário surrado enquanto recitava suas orações. Ainda menina aprendera que aquele objeto carregado de fé lhe seria a melhor companhia.

Um grupo de semblante entristecido estava formado diante do funeral. A defunta estava exposta e florida, como se via através do véu transparente sobre seu corpo inerte e frio.

Adélia posicionou-se ao lado das velas acesas e pôs-se a declamar ladainhas entre espasmos de tristeza banhada em lágrimas. O conforto causado pela sua presença rapidamente envolveu os presentes, que acompanhavam fervorosos cada prece.

Quando o esquife baixou à terra, o espírito dos presentes era de paz, e o retorno às suas casas foi silencioso e desapressado.

Como de costume, Adélia acompanhou o desamparado marido de volta ao seu agora vazio lar. Qualquer pessoa que morria era assim: a mulher solícita oferecia o aconchego da sua presença, tomava as providências necessárias, abria as janelas e acalentava a alma de quem perdeu aquele que ama.

Na pequena cidade corria a certeza de que Adélia era virgem. A última virgem de Alto Monte. Viúvas e esposas a acolhiam, tinham por ela absoluto respeito e a ela confiavam seus pensamentos mais secretos. Era amiga nas piores e melhores horas, sorria ou chorava com a empatia que exigia cada situação. Era bem-vinda e querida por todos.

Assim que entrou na casa do recém-viúvo, abriu as cortinas e colocou no fogo a água para o café. O homem se jogou no sofá, cansado e mudo. As lembranças embaçadas não permitiam que ele raciocinasse com clareza. Apenas se entregou aos cuidados a ele oferecidos.

O cheiro do café tomou conta do ar e Adélia se ajoelhou diante dele com uma xícara fumegante. Ajudou-o a segurar a cerâmica quente e a sorver o líquido amargo. As lágrimas rolaram mais uma vez pelo rosto do desamparado e Adélia, suavemente, apertou suas mãos pousando a xícara sobre a mesa. Esperou que cessassem as convulsões da perda, aninhou o homem em seus braços e, mansamente, conduziu a face entristecida para debaixo da sua saia escura.

O frisson substituiu o pesar e o inesperado desejo se apossou de cada célula do órfão combalido. O abatido homem foi dominado por vigoroso ardor e o brilho esbugalhava seus olhos assustados, enquanto as mãos perdiam a timidez e ganhavam confiança para desvendar a pele nua daquela bondosa mulher.

Enquanto o café esfriava, o luto era alimentado pelo prazer da vida. No chão da sala as roupas repousavam desordenadas e o sofá acolhia dois corpos em compasso. A tristeza e a solidão foram abandonando a pesada atmosfera quando o ápice da intimidade escorreu pela poltrona.

Os momentos que se sucederam foram silenciosos. Ondas de pequenos choques percorriam e relaxavam seus corpos. O cansaço era morno e ofegante. Deu a ele um último beijo na boca e disparou um olhar penetrante e inesquecível. Deixou no ar o seu cheiro, seu gosto e o som dos seus gemidos.

A virgem abriu a porta e saiu. O vento fresco se somou ao conforto da sensação de ter feito o bem a mais um viúvo da cidade. Seus passos eram leves e carregados de contentamento. No caminho para casa cidadãos a cumprimentavam com elevada estima e consideração; afinal seus trabalhos voluntários eram indispensáveis à população.

Sozinha em casa, despiu-se em frente ao espelho. Não quis tomar banho. Deitou-se na cama e prolongou o consolo recém-compartilhado, imaginando qual seria a próxima esposa a falecer.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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