Maio 11, 2024

A primeira lembrança de Duda era a de uma cortina cor de rosa clara, oscilando suavemente na janela do quarto, que ela via por entre as grades do berço. A sensação de paz causada pelo vento no tecido esvoaçante nunca saiu de dentro de si, e a vocação para trabalhar com aquela matéria prima maleável logo cedo já era fato decidido.

Vizinha a sua casa morava Nena, garota agitada e cheia de sonhos. Cresceram juntas, na mesma rua, na mesma escola, na mesma classe. Duda acumulava revistas de moda e Nena experimentava as vivências da adolescência.

Foi nessa época que Duda ganhou sua desejada máquina de costura. Pegou logo o jeito e deslizava feliz diversas fibras pela placa da agulha.

O início da carreira foi marcado pela chegada da primeira encomenda: um traje de festa de 15 anos para a qual sua melhor amiga tinha sido convidada. Desenharam juntas o modelo, escolheram uma fazenda de textura macia e o trabalho foi tomando forma. O vestido ficou melhor que o esperado e atraiu olhares das convidadas mais exigentes. Aos dezesseis anos, Duda já era a modista mais requisitada da cidade.

Vez ou outra vinha Nena pedir um corte novo para um evento ou festividade, e a estilista caprichava para vestir a amiga. Enquanto uma acumulava vivências, a outra juntava fios e botões coloridos.

Para cursar o ensino superior, Nena mudou-se para a cidade vizinha e as duas amigas passaram a se ver com menos frequência. A universitária pedia roupas brancas para o exercício da sua profissão, e Duda prontamente aparecia com jalecos personalizados que caíam perfeitos no corpo da futura médica.

A formatura da faculdade chegou e a celebração exigia uma indumentária de gala. Bordados, brilhos e drapeados enfeitavam a peça de trama encorpada, ajustada ao corpo em estilo sereia e perfeita para o baile. Apesar da insistência da formanda, sua melhor amiga não pôde estar presente: a longa lista de tarefas acumulava ao lado da máquina, que nunca deixava de funcionar.

Nena foi para a cidade grande, arrumou emprego e também um namorado. As chamadas de vídeo eram o suficiente para que Duda enviasse novas criações, e o guarda-roupas de Nena amontoava peças de feitio especial e único.

A notícia do casamento veio com a solicitação do vestido de noiva. A artesã da costura aceitou o desafio e pôs-se a esculpir sua obra. Vestida com perfeição, Nena subiu ao altar com a exuberância de uma verdadeira princesa. Enquanto uma respondia “sim”, a outra recortava tecidos estampados de flor.

Não tardou muito a chegada dos filhos. As amigas se falavam com frequência e nas roupas agora deveriam caber a barriga crescente. Para os bebês, Duda acelerava os pedais da máquina fazendo surgir pequenas e delicadas peças rosas e azuis, carregadas de emoção e carinho.

Acompanhar a vida de Nena era o mais próximo sentimento de felicidade vivenciado pela costureira. Os convites para as festas de aniversário vinham junto com os pedidos de novas criações. Apesar da insistência da sua cliente preferida, Duda sempre declinava pelo mesmo motivo: a tesoura não podia parar.

As imagens compartilhadas pela amiga eternizavam momentos felizes, e eram cuidadosamente arquivadas pela alfaiate para contar a passagem do tempo. Não eram raras as vezes em que Duda abria aquela pasta para reviver o filme da vida de Nena, que narrava sua própria história através do balanço dos pedais e do som da agulha perfurando tramas das mais variadas cores.

Conforme as crianças cresciam, maiores os moldes elaborados para o abastecimento dos guarda-roupas da família. Batizados, natais e até fantasias de carnaval eram registrados e enviados para que a amiga pudesse compartilhar daqueles instantes, mesmo que à distância.

As bodas de prata de Nena se aproximavam, e a demanda veio junto com a insistência para que a companheira estivesse presente. Sem ter a opção da recusa, Duda acelerou os trabalhos para conseguir vestir os donos da festa. Para si, escolheu um corte elegante, com apliques de renda que valorizavam sua silhueta. Ao se olhar no espelho sorriu feliz: era exemplar a qualidade do seu ofício.

A caixa de presente embrulhada em papel de seda e amarrada com uma fita dourada foi a única coisa que Duda pegou antes de fechar a porta e sair para a celebração. Encontrou Nena na entrada do salão. Sua beleza era intensificada pela perfeita confecção da indumentária de alta costura, e sua exuberância atraía a atenção dos convidados.

O embrulho foi entregue entre abraços calorosos e imediatamente aberto pela emocionada anfitriã. O perfume de roupa limpa foi a primeira coisa que saiu da embalagem. Em seguida saltaram aos olhos pequenos quadrados de diferentes padrões e tonalidades, unidos um a um por infinitas linhas de pontos uniformes e resistentes.

Conforme o presente ia sendo desdobrado, as lembranças transbordavam nos olhos deixando escapar lágrimas repletas de recordações contadas através de cada retalho. Por um instante Nena viu sua vida passar. Dispostos lado a lado, fragmentos de todas as roupas contavam a sua biografia. Sem sair do lugar, Duda eternizou os principais momentos da sua melhor amiga, e assim teceu também a linha da própria existência.

O abraço que se seguiu foi longo e apertado. A comoção das lembranças envolveu a ocasião e consagrou a amizade. Desde então, a cada novo pedido, a colcha ganha mais um pedaço de história, eternizada pela costura do tempo e para sempre gravada na memória.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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