Maio 11, 2024

A casa rescendia a produtos de limpeza e o chão brilhava quando o casal voltou da viagem feita para as festas de fim de ano. Não tardou para que o ar fosse tomado pelo aroma dos temperos, e a comida foi servida com cuidado e requinte. Quietos e pensativos, permaneceram silenciosos durante a refeição, retirando-se para o quarto logo em seguida. Talvez seja o cansaço do passeio, pensei enquanto levava a louça para a cozinha.

Dona Mari levantou cedo no dia seguinte. Doutor Otto há muito já deixara a casa para o trabalho. O café da patroa estava servido e eu a esperava para as demandas matinais. Era assim que ela gostava de começar o dia: organizando os afazeres e o cardápio para o jantar. Naquela manhã não houve nenhuma exigência. Dispensou os ovos e o café, tomou suco de laranja e se disse sem apetite. Passou o dia no quarto e não falou mais comigo.

Na manhã seguinte comunicou a vinda de uma amiga, que deveria ser recebida com um farto lanche. Caprichei nos quitutes e na arrumação da mesa. Comeram animadas e falantes, passando depois para o jardim, onde a conversa se prolongou até o entardecer. Após as despedidas, notei Dona Mari um pouco inquieta na espera pelo marido, e, no jantar, observei que o apetite da patroa crescia, o que me deixava cheia de contentamento.

A notícia da gravidez não tardou a chegar. O casal parecia satisfeito e apreensivo: a espera do primeiro filho vem acompanhada de muitas incertezas, principalmente depois de tantas tentativas frustradas, e eu compreendia isso.

Era fevereiro, quando a visita voltou, dessa vez para passar o dia, saíram para as compras, almoçaram fora e chegaram carregando sacolas e embalagens coloridas, conversando alto e se divertindo. Devoraram o café da tarde, para minha alegria.

Enquanto o apetite da patroa crescia, suas curvas ganhavam novo contorno, ao mesmo tempo que seu interesse pela ordem da casa diminuía: deve ser por conta da gravidez, pensava eu. Agora o mais importante era gerar a criança.

No terceiro mês que abri a porta para a visitante, a patroa veio cheia de abraços e beijos carinhosos. Foram para o quarto do casal e lá permaneceram por horas e horas, até o momento da despedida. A patroa se encolheu na poltrona e ficou pensativa, olhando fixo para algum ponto na parede. Devem ser os hormônios. Só pode ser isso.

O primeiro trimestre chegava ao fim, e dona Mari engordava simultaneamente com seu desinteresse pelos afazeres da casa. Eu continuava minha labuta como se não percebesse, e o ambiente estava sempre limpo e arejado. Toda grávida fica um pouco esquisita. Apesar de nunca ter tido filhos, era assim que eu imaginava.

A visita voltou numa manhã chuvosa de abril, e não pude deixar de notar a barriga saliente marcada pelo modelo justo que ela usava. Compreendi que a amiga da patroa passava também por uma gestação, e me alegrei com o fato dela poder conversar com alguém em situação semelhante. A conversa entre as duas prosseguiu entre sussurros e gargalhadas, enquanto bolos e sanduíches eram devorados com gosto e prazer.

O mês das mães veio junto com o início das obras no dormitório do bebê. Agora esse era o único assunto do interesse da minha patroa. Melhor dizendo: a decoração do quarto e as exigências de receitas preparadas para matar seus desejos. Perfeitamente compreensível.

Nesse mês, dona Mari esperou a amiga com um buquê de flores e eu ouvi quando ela gritou da sala: É menino! É menino! Soube depois que o aposento em preparo seria também para um menino, o que deixou o patrão extremamente satisfeito.

Às vezes eu a surpreendia sentada na varanda com o olhar vago, acompanhada por um refrigerante e um saco de batatas. É, mulher grávida tem dessas coisas.

Junho chegou e o encontro entre as duas foi permeado de conversas murmuradas e risinhos disfarçados. Dona Mari presenteou a amiga com vestidos de gestante e preparou uma cesta de frutas para que ela levasse. Eu achava bom ver minha patroa ter com quem confidenciar nessa fase, e as duas tinham em comum um bebê a caminho.

O inverno chegou e as duas exibiam o progresso aparente de uma criança que cresce no ventre. Dessa vez a merenda foi servida na sala de estar, onde as duas se esticaram no sofá e maratonaram uma série, esvaziando a bacia de pipoca e o prato de doces.

O quarto decorado de fundo de mar ficou pronto em agosto, e a visitante foi recebida e conduzida a conhecer o cômodo perfumado. Passaram muito tempo lá dentro e a amiga foi presenteada com roupas e sapatos de recém-nascido, indo embora feliz com seus regalos, enquanto dona Mari a acompanhava até a perder de vista.

O mês do nascimento chegou junto com a estação das flores. O movimento da patroa era agitado, com ar preocupado. Isso é comum ao final da gravidez, refletia eu enquanto servia mais uma travessa de coxinha.

Dessa vez a visita não veio. Era dia doze quando o celular tocou um pouco antes da patroa anunciar o rompimento da bolsa. Doutor Otto chegou em seguida, pegou a mala cuidadosamente preparada e foram para a maternidade.

O retorno da família completa veio junto com uma enxurrada de felicidade que dominou o ambiente. Era constante a música infantil e tranquila que saía da Alexa, e as janelas abertas deixavam o ar fresco circular, espalhando cheiro de nenê por cada canto.

A nova mamãe não proferiu palavra de queixa durante o pós-parto. Não poder amamentar por falta de leite parecia não a incomodar, e fazia questão de preparar ela mesma as mamadeiras para nutrir o infante. Rapidamente retomou os hábitos alimentares de antes e também voltou a dar ordens para a manutenção do lar.

Quarenta dias depois do nascimento, a amiga voltou sem avisar. Estranhei a formalidade com a qual foi recebida e convidada a passar para o cômodo onde o bebê dormia.

O encontro foi rápido e o lanche não foi servido. A despedida foi breve e vi que a visitante deixou a casa enxugando uma lágrima.

Nunca mais voltou. Miguel nunca teve irmãos e nem a oportunidade de conhecer a mulher que engravidou junto com a sua mãe. Deve ter sido só uma amizade de gestação, melhor não pensar mais no assunto.

Clara Lee

Clara Lee é escritora. Colaborou com o jornal "A Noite" na década de 1990, "Viletim" edição impressa década de 2000, ambos de Piracicaba/SP.

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